A economia da salvação:
Desdobramentos antropológicos,
ecológicos e teológicos da reificação da consciência
Felipe Dittrich Ferreira,
antropólogo
Marcos Vinicios de Araujo Vieira, sociólogo
Quando Graciliano Ramos
publicou S. Bernardo, em 1934, o
moderno capitalismo começava a penetrar no domínio rural nordestino, com
conseqüências sociais diversas. No romance, à luz das transformações
socioeconômicas em curso, Graciliano narra o drama humano de Paulo Honório —
profetizando, ao mesmo tempo, a realidade do homem burguês de nosso tempo. Com
sensibilidade embotada e olhar quantificador, Honório decide transformar sua
fazenda, S. Bernardo, de modo a adequá-la plenamente à lógica do capitalismo
moderno. Buscando ascender socialmente, Honório nada poupou, sacrificando até
mesmo suas relações familiares. Ao final, quando tudo em sua vida, incluindo a
relação amorosa com Madalena, foi "afogado nas águas geladas do
egoísmo", o personagem, num esforço sincero de auto-análise, constata:
Nem
sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. É a
desconfiança terrível que aponta inimigos em toda parte! A desconfiança é
também conseqüência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou
um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes
dos nervos dos outros homens, uma boca enorme, dedos enormes. (...). Fecho os
olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades
monstruosas. A vela está quase a extinguir-se.
(...).
Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto, o luar entra
por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
É
horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo. Se ao menos a
criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que Miséria!
Com a publicação da
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium,
do Papa Francisco, é chegado o momento de levarmos a ilustrativa experiência
narrada por Graciliano Ramos mais a sério. Precisamos refletir sobre o tipo
humano gerado pelo capitalismo e pensar, em particular, nas repercussões
teológicas da adesão desmedida ao universo mercantil. Francisco é enfático ao
dizer que o capitalismo, em sua própria raiz, é iníquo, carecendo de orientação
antropológica. O sistema capitalista, em outras palavras, trata o homem como
coisa entre coisas, não apenas ignorando sua dignidade, mas também
embrutecendo-o deliberadamente. Essa denúncia já havia sido antecipada pelo
Papa em 2013, durante visita à ilha de Lampedusa, no sul do Itália. Na ocasião,
Francisco manifestou solidariedade aos refugiados e imigrantes que se lançam ao
Mediterrâneo, em embarcações muitas vezes improvisadas, na busca desesperada
por condições dignas de vida. Frente aos destroços de navios naufragados, o
Papa não se limitou a solicitar compaixão. Procurou lançar luz sobre aspectos
sociológicos do problema, indicando que, em função da arraigada “cultura do
bem-estar”, estaria em curso a “globalização da indiferença”:
Habituamo-nos
ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é
responsabilidade nossa! (...) A globalização da indiferença tirou-nos a
capacidade de chorar.
Ao denunciar este quadro,
Francisco nos compele a refletir, sob nova luz, a respeito de um conjunto
importante de capacidades humanas, relacionadas, por um lado, ao coração, e por
outro, ao entendimento. Está em questão a consciência do homem moderno: seu
discernimento, sua sensibilidade, sua forma de relacionar-se. Francisco trata
desses temas, no texto mencionado acima, exortando o homem a transformar-se,
levando em conta os ensinamentos do Evangelho, ao mesmo em que faz críticas ao
sistema econômico em vigor. Parece, portanto, haver forte relação entre os dois
temas.
Para compreendermos a
conexão entre teologia e economia, para a qual o Papa chama a nossa atenção,
parece-nos útil aplicar alguns conceitos da moderna ciência social à reflexão
teológica. O conceito de “reificação”, por exemplo, proposto por Lukács, parece
iluminar aspectos importantes da situação denunciada pelo Bispo de Roma. Na
visão do pensador húngaro, o conceito explicaria traço característico da
racionalidade moderna que tende a transformar em “coisas” as mais diversas
entidades e relações, desumanizando-as. Já na década de 1920, Lukács assinalava
a proliferação desse fenômeno em função do alargamento acelerado da esfera
mercantil, dentro da qual relações essenciais passaram a se desenrolar,
incluindo a relação dos homens entre si (por meio, sobretudo, do comércio de
“mão-de-obra”) do homem consigo próprio (veja-se, por exemplo, a idéia de
“capital humano”, desenvolvida pela Escola de Chicago, na década de 1960) assim
como do homem com a natureza (transformada em simples fonte de
“matérias-primas”).
O desfecho desse processo,
na perspectiva lukacsiana, não poderia ser mais sombrio: a própria consciência,
que consiste, na linguagem do Concílio Vaticano II, no lugar sagrado de
comunicação de Deus com o homem, tende a ser “coisificada”. Esse desfecho tem
implicações antropológicas, ecológicas e teológicas que devem ser denunciadas
com ênfase. Afastado de Deus o homem se empobrece, preso num círculo vicioso de
autorreferencialidade. Colocando-se no centro do universo, por vezes de forma
desatenta, o indivíduo reificado transforma as demais pessoas em meios para
seus fins particulares, à maneira de um deus frívolo e cruel. Da mesma forma é
tratada a natureza, transformada em simples depósito de recursos. Sob o olhar
mercantilizado, com efeito, tudo é permitido: vidas podem ser descartadas,
pessoas podem ser escravizadas, rios e mares podem ser convertidos em esgotos,
florestas podem ser transformadas em dinheiro, ao mesmo tempo em que se admite
com naturalidade a criação de animais em larga escala exclusivamente para o
abate como se outras espécies não tivessem valor intrínseco. Estamos, em
verdade, no reino da completa indiferença, que a Campanha da Fraternidade da
CNBB deste ano vem a denunciar, ao menos parcialmente, com o tema do tráfico de
pessoas — crime que transforma seres humanos em objetos de lucro e prazer.
Diante desse quadro,
contra o qual se insurge ao mesmo tempo a crítica teológica e a sociológica,
não cabe dúvida de que somos desafiados a tomar uma decisão fundamental para
garantir nossa humanidade, resgatando, ao mesmo tempo, a qualidade da vida em
sociedade e as condições de vida na Terra, sob o ponto de vista ecológico. É
urgente recuperarmos o discernimento, libertando o inconsciente de fantasias
criadas pelo capitalismo e a consciência da lógica calculista hoje imperante.
Ao mesmo tempo, devemos refletir sobre a reconstrução da sensibilidade, sobre
nossa capacidade de estabelecer vínculos significativos não apenas com outros
seres humanos, mas também com Deus, inclusive por meio do “espelho do mundo
sensível”, nas palavras utilizadas por São Boaventura para fazer referência à
natureza. Não se trata, portanto, de buscarmos apenas a salvação das almas,
como se dizia antigamente. É necessário, de fato, salvarmos o mundo,
ressacralizando-o. Ao combatermos a reificação, restaurando, pouco a pouco, o
sentido das coisas, oxalá possamos dar alguns passos nessa direção.
A história da evolução à
qual estamos fazendo alusão não é simples. Já se alegou que a religiosidade foi
combatida, ao longo do período moderno, de modo que o homem não pudesse evocar
uma fonte alternativa de legitimidade frente a eventuais conflitos com a lei
civil. Com relação ao desenvolvimento do capitalismo, embora não seja correto
falar num esforço deliberado em contraposição à religião, inclusive à luz das
lições de Max Weber, não há dúvida de que o referido sistema, primeiro ao
prender o homem à esfera da produção e, em seguida, ao aprisioná-lo à esfera do
consumo, deu origem a uma reação em cadeia que parece minar a religiosidade por
todos os lados, prejudicando fatalmente nossa capacidade de compreender este
mundo e respeitá-lo. T. S. Eliot atribuiu parcela importante de culpa ao
exagerado papel atribuído por nossa Era à ciência. Nos versos abaixo,
traduzidos por Rubem Alves, os saberes, que buscamos acumular, contrapõem-se à
sabedoria, que deixamos de cultivar:
O
círculo sem fim da idéia e ação,
De
invenção sem fim, de experimentação sem fim,
Traz
conhecimento do movimento, mas não da tranqüilidade;
Conhecimento
da língua, mas não do silêncio;
Conhecimento
de palavras, e ignorância da Palavra.
Para resumir a ópera
poderíamos dizer o seguinte: distraído por miragens de felicidade, cooptado por
ilusões de poder, encerrado num universo artificialmente desprovido de sentido,
reduzido a instrumento e afastado de Deus, o homem tornou-se menos criativo e
mais sujeito à manipulação, ao mesmo tempo arrogante e tíbio, menos propenso a
exigir uma vida absolutamente melhor sobre a Terra. Descrentes, em outras
palavras, com relação à existência de um propósito maior para este mundo,
perdemos a capacidade de nos reconhecermos, mutuamente, como filhos de Deus. O
mesmo ocorre no que diz respeito ao modo como compreendemos e nos relacionamos
com a natureza: perdemos a capacidade de ver as diversas facetas do mundo em
sua essencialidade, à luz, por exemplo, daquela evolução cósmica, rumo à
Cristificação de todas as coisas, de que nos fala Teilhard de Chardin.
Nessas circunstâncias,
somos como que obrigados a declarar como Paulo Honório: "endureci,
calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá
dentro a sensibilidade embotada". No mundo reificado, somos, de fato, como
aquele cego de Betsaida, narrado pelo Evangelho de Marcos, a espera de uma
cura, porque, como ele, não nos acautelamos do fermento dos fariseus. Nesse
sentido, superar a consciência reificada implica adquirir olhar qualitativo
sobre o mundo e, com Francisco, "a capacidade de chorar, de padecer
com" diante do sofrimento do outro, porque de outro modo estamos na
escuridão da autorreferencialidade. Em última instância, significa superar a
racionalidade instrumental, que opera através de cálculo sobre a adequação
eficiente entre meios e fins, sem que se coloque em questão a validade dos
próprios fins, mesmo quando eles importem na destruição das condições de
sobrevivência do homem sobre a Terra ou na alienação de sua própria humanidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário