Dimensão
política do Tríduo Pascal
José
Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo,
teólogo, escritor, conferencista e professor universitário
Dentro
de poucos dias estaremos celebrando a festa da Páscoa cristã. Desde a mais
remota antiguidade a Páscoa cristã é a celebração do mistério da ressurreição
de Jesus. Porém, a liturgia pascal, desde os primórdios, uniu a celebração da
ressurreição de Jesus à sua paixão e morte. Num primeiro momento pode parecer
estranho que a celebração pascal, enquanto festa da vida, esteja profundamente
conectada com a paixão e a morte de Jesus. Mas nisso não há nenhum exagero e
nem tão pouco algo fora de lugar.
A
ressurreição acontece porque antes houve paixão e morte. Paixão entendida como
a fidelidade de Jesus ao projeto do Pai até as últimas consequências (Mc
14,34-36). Morte porque aquele galileu se tornara muito incômodo para o sistema
religioso e político da época e era preciso eliminá-lo de uma só vez e para
sempre (Jo 5,18). Torturado, e depois eliminado da pior forma possível para
aquela época, Jesus ressuscita pelo poder de Deus (At 2,24). Sua ressurreição
foi a resposta dada pelo Pai aos seus torturadores e aos seus algozes. Eles pensavam
que tinham eliminado para sempre a sua memória, mas, de repente, Jesus
ressuscita glorioso e torna-se mais incômodo e mais vivo do que antes, para
desespero daqueles que o tinham torturado e matado (Mt 28,11-15; At 5,21-42).
Precisamos
eliminar os resquícios de certa cristologia ainda presente em determinados
ambientes, segundo a qual Jesus teria passado pela tortura e pela morte para
aplacar a ira de seu Pai. Deus teria ficado muito zangado com os pecados da
humanidade e exigia uma satisfação, uma reparação à altura. E para realizar tal
reparação teria decidido desde toda a eternidade punir o próprio Filho, de modo
que sua ira fosse aplacada. Chegou-se a atribuir a Santo Anselmo esse absurdo.
Porém, a teoria da expiação não passa
de uma falsa interpretação do pensamento deste grande teólogo. Na verdade o que
Anselmo quis afirmar, com sua teoria, foi a plena e absoluta liberdade de Jesus
e a plena e absoluta acolhida da decisão de Jesus por parte do Pai. O Filho
decide ir até o fim e não recuar, mesmo diante da ameaça de morte. O Pai decide
acolher a decisão do Filho até as últimas consequências. Não interfere e não
impõe ao Filho um meio-termo, um compromisso para salvar a própria pele, como,
às vezes, costumam fazer certos pais quando seus filhos são ameaçados.
A
superação desse tipo de cristologia do conformismo do Filho e da brutalidade sanguinária
do Pai é de fundamental importância para não obscurecermos e não negarmos as
devidas responsabilidades. As lideranças religiosas judaicas e o império romano
tiveram, sim, a sua responsabilidade na tortura e na morte de Jesus (Jo 19,11).
O que aconteceu não foi fruto do acaso ou de um plano previamente estabelecido
por Deus e do qual Jesus não pôde fugir. O que aconteceu foi um conluio entre o
poder religioso e o poder político que predominavam na Palestina daquela época.
O sistema religioso e o sistema político de então torturaram e mataram Jesus. É
claro que isso não nos dá o direito de acusar todos os judeus de todas as
épocas pelo assassinato de Jesus, como tristemente e lamentavelmente fez a
Igreja Católica até pouco tempo atrás e como levianamente continuam fazendo alguns
católicos de direita. Não podemos nem mesmo condenar todos os romanos daquela
época. Mas é preciso deixar claro que a morte de Jesus não foi um desejo do Pai
e do qual o Filho não teve como escapar. Dizer que tudo já estava previsto é
transformar a fé cristã em puro fatalismo e em mero capricho de Deus. E isso
seria um tremendo absurdo.
A
paixão, a morte e a ressurreição de Jesus inspiraram homens e mulheres de todos
os tempos. Essas pessoas, animadas pela fé em Cristo, assumiram corajosamente o
projeto de Deus até as últimas consequências. Desde os primeiros mártires do
cristianismo até os mais recentes como Santos Dias, Margarida Alves, Dorothy
Stang, Josimo e Oscar Romero, homens e mulheres seguiram em frente e não
arredaram o pé diante das ameaças dos poderosos, prepotentes e arrogantes. E
faziam isso porque estavam convencidos de que entre paixão, morte e
ressurreição existe uma profunda ligação. Estavam convencidos de que, mesmo
triturados e assassinados pelos sistemas religiosos e políticos, continuariam
vivos, ressuscitados pelo poder de Deus. Famosa é a frase de Dom Oscar Romero:
“Se me matam, vou ressuscitar na luta do meu povo”.
Meditar
nestes termos sobre a paixão e a morte de Jesus é essencial, uma vez que
corremos o risco de cultuar um Jesus açucarado, irreal e inexistente. De fato,
ainda hoje não são poucas as pessoas e os movimentos de Igreja nos quais Jesus
é visto sem nenhuma conexão com a sua história, com os fatos que antecederam a
Páscoa. Isso leva a um cristianismo aguado e descomprometido, que se recusa a
ver a realidade e se distancia propositadamente de um compromisso sério com a
luta pela justiça e pela construção de um mundo mais humano e saudável. Nós
cremos firmemente na ressurreição, no Cristo glorioso que venceu a dor, o
sofrimento e a morte (Mc 16,6). Mas não podemos imaginar um Cristo ressuscitado
diferente daquele que caminhou pelas estradas da Galileia e que enfrentou a
paixão e a morte por causa da sua fidelidade ao projeto do Pai e por causa de
seu amor pelo povo. As narrativas das aparições do Ressuscitado, mais do que
evidenciar a reanimação de um cadáver – como se Jesus tivesse readquirido o
mesmo corpo de antes da morte – querem evidenciar a relação entre o Jesus
histórico e o Jesus ressuscitado (Lc 24,39-40; Jo 20,27). Querem mostrar que
não é possível adorar o Ressuscitado negando aquele Jesus que caminhou pelas
entradas empoeiradas da Palestina, anunciando a libertação aos pobres e
oprimidos.
Neste
sentido pode-se e deve-se dizer que o Tríduo Pascal possui uma dimensão política inegável. Celebrá-lo é
reconhecer que Jesus, deliberadamente e conscientemente tomou partido, escolhendo ser fiel ao projeto do Pai, o qual
incluía uma paixão pelo povo, um anúncio de libertação e uma rejeição radical
do projeto do templo de Jerusalém que tinha se corrompido, transformando a
religião num “mercado religioso”, num “covil de ladrões” (Jo 2,16). Celebrar o Tríduo
Pascal é reconhecer que Jesus rejeitou o projeto político dos romanos, cujos
chefes agiam como verdadeiras “raposas” (Lc 13,31-33), fazendo pesar sobre os
ombros das pessoas, especialmente dos mais pobres, a tirania e a opressão (Mc
10,42-45).
Sem
essa dimensão política, toda celebração pascal vira uma farsa, um ritual sacrílego que ofende a Deus, porque desprovido de
consequências reais para a vida da humanidade. Ainda hoje existem aqueles que
querem uma Semana Santa folclórica, com bastante emoção e choro diante de uma
estátua de Nossa Senhora das Dores ou de um Senhor dos Passos branco, de olhos
e sangue azuis. Mas não querem uma Semana Santa que associe as dores de Maria,
mãe de Jesus, às dores de Cláudia Teixeira, negra, pobre, moradora de periferia,
brutalmente arrastada e assassinada pela Polícia Militar do Rio. Não querem uma
Semana Santa que ouse associar o Cristo amarrado na coluna da flagelação ao
jovem negro amarrado a um poste por playboys brancos cariocas, num bairro
chique do Rio de Janeiro.
É fácil comover-se diante de
estátuas, mesmo que sejam estátuas “sagradas”. Elas estão lá imóveis. Não nos
incomodam e não nos desinstalam. Não nos causam problemas, não nos provocam e
nem exigem de nós conversão. Mas comover-se diante de estátuas não é cristão,
não é evangélico e, de certa maneira, é uma idolatria.
Idolatria porque Jesus não quer lágrimas para ele e nem tão pouco para uma
estátua sua ou de sua mãe. Não foi isso o que ele disse a algumas mulheres
enquanto se dirigia para o Calvário (Lc 23,27-32)? O que ele quer mesmo de nós
é uma comoção que se transforme em ação em favor dos que estão oprimidos,
sofridos, abandonados e excluídos do direito à vida plena (Mt 25,31-46). Urge,
pois, celebrar o Tríduo Pascal com obras e gestos, fazendo o que pediu o papa
Francisco na Evangelii Gaudium (EG),
ou seja, “tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (EG, 24). Se a nossa
celebração da Páscoa serve apenas para aderir a uma economia que mata, deixa do
mesmo jeito a desigualdade social, ajuda a produzir uma sociedade de “pessoas
descartáveis” e contribui para a globalização da indiferença (EG, 53-60), então
é uma páscoa consumista, de supermercado, e não a Páscoa de Jesus. Para ser
Páscoa de Jesus é preciso que ela não seja uma “espiritualidade do bem-estar”,
uma “teologia da prosperidade” alienante, subjetiva, sem compromissos fraternos
(EG, 89-90). Para ser a celebração da Páscoa de Jesus ela precisa ser política, ou seja, anunciar um caminho
esperançoso e libertador que leve felicidade e alegria aos pobres. Para ser Páscoa
de Jesus ela terá que ser uma verdadeira “caravana solidária” (EG, 87).
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