segunda-feira, 31 de março de 2014

Análise histórica


Igrejas, golpes e ditaduras no Brasil

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário

            No último artigo abordei a questão dos golpes e das ditaduras no Brasil. Esforcei-me para mostrar que essa é uma prática comum há mais de quinhentos anos, desde que esse lugar, que hoje se chama Brasil, foi invadido pelos portugueses. Neste artigo quero refletir sobre a atitude das Igrejas diante desses golpes. Chamo a atenção para o plural, pois aqui quero falar de todas as Igrejas e não apenas da Igreja Católica Romana.

            Até o final do Império, a Igreja Católica Apostólica Romana era a religião oficial do Brasil. Por essa razão ela detinha também a hegemonia e, com isso, impedia ostensivamente o ingresso e o avanço de outras Igrejas no país. Somente no final do Império e no início da República as Igrejas protestantes históricas começaram a ganhar visibilidade por meio dos imigrantes europeus que se estabeleceram no sul do Brasil, particularmente os alemães. Por esse motivo podemos afirmar que a Igreja Católica Romana foi a única Igreja a presenciar e a apoiar os golpes aplicados nesse período.

            Sabemos que durante o período da colonização e do Império a Igreja Católica Romana foi totalmente conivente com o que aconteceu. Naquele período era normal a política da boa convivência entre a cruz e a espada. A Igreja Católica Romana simplesmente ratificava o que o Estado e a elite realizavam. Algumas vozes se levantaram contra os abusos, mas, além de serem vozes isoladas, foram totalmente reprimidas. É o caso, por exemplo, do jesuíta Antônio Vieira que, por denunciar os desmandos e horrores contra os indígenas e contra os judeus foi incompreendido, perseguido e, por fim, silenciado. Escapuliu por pouco da Inquisição.

            As atrocidades praticadas pelos portugueses, no momento da invasão do Brasil e durante todo o período colonial, foram amparadas por documentos pontifícios. Darcy Ribeiro, no seu livro O povo brasileiro (São Paulo: Companhia de Letras, 2007, 2ª edição p. 36-37), nos lembra que por trás da brutalidade dos lusitanos estava o respaldo de textos papais. O primeiro deles era a Bula Romanus Pontifex, do papa Nicolau V, datada de 8 de janeiro de 1454, que afirmava: “concedemos ao rei Afonso a plena faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus descendentes [...]. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado”. O outro era a Bula Inter Coetera, do papa Alexandre VI, promulgada, não por acaso, em 4 de maio de  1493, após a invasão do nosso continente por Américo Vespúcio, e que dizia o seguinte: “E a vós e a vossos herdeiros e sucessores [...], pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em São Pedro, assim como do vicariado de Jesus Cristo, a qual exercemos na terra, para sempre, [...] constituímos [...] senhores, com pleno, livre poder de sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas e os moradores e habitantes delas, e reduzi-los à fé católica”.

            Como se pode ver, esses textos pontifícios autorizavam toda e qualquer brutalidade. Tudo em nome de Deus, e impedir a brutalidade significava ser excomungado. As expressões invadir, conquistar, subjugar, sujeitar, reduzir à servidão, tudo praticar em utilidade própria, não foram inventadas por mim, mas tiradas literalmente de documentos papais. Os ingênuos e os católicos conservadores argumentam que os papas não teriam pensado em atrocidades no momento em que escreveram essas “autorizações”. Teriam sido os espanhóis e portugueses a praticar os exageros. Esquecem que, naquela época, essa era a forma mentis, ou seja, o modo de pensar de toda a Igreja, particularmente de sua hierarquia. Estávamos ainda no período da Inquisição, e a tortura, o assassinato, a brutalidade contra os “infiéis e pagãos” eram consideradas normais.

            É verdade que alguns papas, vindo a saber de tais atrocidades cometidas nas “terras de Santa Cruz”, se pronunciaram sobre o assunto, determinando menos sofrimento e mais cuidado. Mas a Igreja Católica nunca tomou medidas sérias efetivas para pôr fim ao massacre dos indígenas e dos negros. Sempre tolerou a “máquina de moer gente” (Darcy Ribeiro), na qual havia se tornado o Brasil colônia. Mesmo porque vigorava então a lei do padroado, um acordo instituído entre a Santa Sé e Portugal, através do qual o papa delegava ao rei de Portugal o poder de organizar e financiar todas as atividades religiosas nos domínios e nas terras invadidas pelos portugueses. Tomar medidas efetivas contra os massacres realizados pelos portugueses aqui no Brasil seria descumprir o padroado e criar sérios problemas para a Santa Sé, tanto de ordem política como econômica. Desse modo a Igreja Católica Romana preferiu se omitir e quase sempre silenciar diante dos golpes e atrocidades praticadas no período da colonização.

Isso continuará por todo o período do Império, ocasião em que os documentos papais ainda são tidos como válidos e continuará vigorando o padroado, mudando apenas o seu executor. Ao invés do rei de Portugal, o imperador do Brasil passa a ser o organizador e financiador da Igreja Católica. Todos silenciam mesmo porque, como nota Darcy Ribeiro, as disposições papais terminaram por criar uma cultura de submissão e resignação. Ainda hoje esse silêncio é a norma vigente no Brasil que garante o exercício arbitrário do poder sobre o povo, tirando-lhe a possibilidade de traçar seu próprio destino, vendo as pessoas apenas como meros servidores dos poderosos.

Com o golpe da proclamação da República se decreta também a separação entre Igreja e Estado. Mas a Igreja Católica não se deu por vencida e continuou freqüentando a “cozinha” dos poderosos e dos governos, na esperança de que estes depositassem alguma coisa de substancioso em seus cofres. Por essa razão, de um modo geral, ela, seja através de sua hierarquia seja através da maioria absoluta dos católicos, continuará apoiando todos os golpes, inclusive aquele de 1964. Se houve uma posição diferente a partir do final da década de 1960, isso não se deve a uma mudança copernicana na posição da Igreja Católica no Brasil. Aconteceu antes de tudo pela atuação inesperada do Espírito Santo através do Concílio Vaticano II e de Medellín, pela ação de algumas eminentes figuras do laicato católico, bem como pela coragem de bispos como Dom Hélder Câmara, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Luciano Mendes, Dom Tomás Balduíno e Dom Pedro Casaldáliga. Foram os anos áureos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que enfrentou corajosamente a ditadura e denunciou seus desmandos.

Mas, de um modo geral, a maioria dos católicos (incluindo muitos padres e bispos) continuou omissa e apoiando os golpes. Mesmo recentemente é possível notar como a quase totalidade dos católicos se mostra indiferente para com o tema da democracia e da cidadania. A atuação de João Paulo II e da Cúria Romana nos últimos trinta anos permitiu que essa mentalidade conservadora se intensificasse. As redes católicas de televisão, por exemplo, salvo um ou outro caso, se associam à mídia golpista e em nada colaboram para uma autêntica formação da consciência crítica cidadã. Com seus programas, quase todos melosos e alienados, contribuem para que o público católico continue ultraconservador e direitista, tanto do ponto de vista religioso como político.

No que diz respeito aos protestantes históricos, também eles chegam ao Brasil com uma visão semelhante, mesmo porque, sendo minoria, não queriam um confronto direto com o poder. Eram igualmente herdeiros do eurocentrismo e das tradições conservadoras de seus países de origem, com aquela concepção de que a raça ariana era a autêntica raça. Isso ficou visível durante a Segunda Guerra Mundial, quando os protestantes alemães silenciaram diante das atrocidades de Hitler. Por isso, recentemente, as Igrejas protestantes alemãs recitaram publicamente um “mea culpa”, reconhecendo que, enquanto cristãos, foram omissos e indiferentes aos horrores praticados por Hitler. É verdade que na Alemanha alguns protestantes se rebelaram contra o nazismo. A figura mais eminente foi Dietrich Bonhoeffer, pastor luterano e teólogo, fuzilado pelo regime. Mas a maioria absoluta dos protestantes não se incomodou e nem se mobilizou contra Hitler. Aqui no Brasil alguns pastores e lideranças de Igrejas protestantes históricas se posicionaram contra a ditadura de 1964. Vale mencionar o nome do presbiteriano Jaime Wright, que juntamente com Dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel, desenvolveu uma ação de denúncias e de lutas contra a ditadura, culminando no Projeto “Brasil: nunca mais”. Mas isso não significa que a totalidade dos protestantes brasileiros pensava e agia do mesmo modo.

No que diz respeito às Igrejas evangélicas e pentecostais a questão é mais complicada, uma vez que hoje é possível comprovar que muitas delas chegaram ou surgiram na América Latina com o propósito explícito de alienar as pessoas e de destruir toda atividade daqueles cristãos que lutavam contra os horrores do capitalismo. Délcio Monteiro de Lima, no seu livro Os demônios descem do Norte (Francisco Alves, 1987), provou como os Estados Unidos, especialmente na era Nixon e Reagan, montaram um plano para financiar e dar suporte à direita católica e a Igrejas evangélicas e pentecostais que conseguissem tirar do povo toda e qualquer consciência crítica. Hoje já temos muitos evangélicos sérios, bastante comprometidos com a luta pela democracia e pela cidadania. É o caso, por exemplo, dos Evangélicos pela Justiça, os quais possuem um site no qual se pode ver a atuação deles. Mas, infelizmente, eles ainda são uma minoria, pois os evangélicos, de um modo geral, manipulados por certas lideranças midiáticas, continuam indiferentes e insensíveis às questões da cidadania e possuem uma visão política ultraconservadora e direitista.

A conclusão é dura, mas inegável: todas as Igrejas aderiram e apoiaram os golpes e, sob muitos aspectos, continuam fazendo o jogo da burguesia e da elite brasileira. Possuem, pois, uma dívida enorme com o povo brasileiro. Precisam, o quanto antes, saldar essa dívida, se quiserem continuar sendo Igrejas cristãs e se quiserem continuar existindo em nosso país. Com o passar do tempo o povo vai se dando conta disso e vai abandonando-as. O Censo de 2010 já aponta nesta direção. Não só os católicos e protestantes históricos, mas também grandes Igrejas evangélicas começam a perder cada vez mais fiéis. Aumenta o número dos “evangélicos genéricos”, ou seja, de evangélicos que se declaram tais, mas não se identificam mais com nenhuma Igreja. E estou convencido de que esse abandono tem muito a ver com o distanciamento das Igrejas do núcleo essencial da fé cristã anunciado por Jesus: “Se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35).

 

 

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