quarta-feira, 28 de maio de 2014

Momento eclesial


Em busca da unidade perdida

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Tentei acompanhar de perto a visita do papa Francisco aos “lugares santos” da Palestina e de Israel para comemorar os cinquenta anos da histórica visita de Paulo VI àquelas terras, no ano de 1964, em pleno período da realização do Concílio Vaticano II. Aquelas terras possuem um valor afetivo muito grande para boa parte da humanidade, uma vez que são o berço do cristianismo, o espaço da atuação de Jesus de Nazaré, de seus primeiros discípulos e das primeiras comunidades cristãs.

Mesmo que um cristão nunca tenha ido até lá, aquela região permanece para ele um referencial simbólico de grande monta. Logo, o que ali acontece se reveste de um caráter profundamente afetivo e termina mexendo com todo o inconsciente coletivo cristão. Mas, antes mesmo do cristianismo, aquelas terras são a razão de ser do povo hebreu, povo sofrido e maltratado até hoje, em cujo seio nasce a experiência do seguimento de Jesus, do qual o cristianismo herda um patrimônio espiritual incalculável. Sem o povo judeu não haveria cristianismo. Além disso, aquela região tem ainda um significado muito grande para o povo islâmico e, de modo particular, para o povo palestino, obrigado até hoje a viver na incerteza, na insegurança, na dor e no sofrimento, sem ter direito a um reconhecimento pleno e definitivo de sua pátria. A convivência pacífica dessas três grandes religiões e o reconhecimento real de uma pátria para o povo palestino é de fundamental importância para o futuro da paz mundial. Assim sendo, urge encontrar um caminho para se chegar a essa tão sonhada paz.

Acompanhei de modo particular o encontro do papa Francisco, bispo da Igreja de Roma, líder mundial dos católicos, com o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, líder da grande e valiosíssima Igreja Ortodoxa, portadora de uma grande riqueza espiritual para todo o cristianismo. Fiz questão de seguir ao vivo pela televisão este momento histórico, pois não puder fazer isso a cinquenta anos atrás, quando Paulo VI e Atenágoras se encontraram. Quis seguir este momento por estar convencido de que a unidade do cristianismo no futuro passará por aquilo que acontecer entre essas duas grandes Igrejas.

Confesso que esperava gestos mais ousados de ambas as partes, após cinquenta anos do primeiro grande encontro, no qual os dois líderes de então retiraram a mútua excomunhão que vigorava entre as duas Igrejas, desde a triste ruptura no século XI. Senti muito formalismo e pouca espontaneidade no encontro. Os estudiosos dizem que a fisionomia das pessoas costuma revelar muita coisa. Fiz questão de observar atentamente este detalhe: os rostos dos que estavam presentes ao encontro. Não havia alegria, nem mesmo nos dois principais protagonistas; aquela alegria que devia caracterizar o reencontro de irmãos, depois de um longo período sem se ver. O que se via eram expressões de uma profunda tensão. Os dois líderes pareciam estar menos tensos, mas a platéia ao seu redor manifestava visivelmente sinais de muita tensão. Aliás, em alguns rostos era bem visível a raiva, o ódio, o fechamento. Fiz um esforço, mas não consegui em nenhum momento enxergar pelo menos o esboço de um sorriso na face dos outros padres e bispos que rodeavam o papa e o patriarca. Isso, para mim, diz muita coisa.

Sabe-se que o ambiente onde se deu o encontro entre Francisco e Bartolomeu, tido como o sepulcro de Jesus e o local de onde partiu o anúncio da ressurreição, é ainda hoje palco de verdadeiras disputas entre as Igrejas cristãs. Têm-se conhecimento inclusive de cenas recentes de violência física entre membros das diferentes Igrejas neste local, que deveria ser um ponto de comunhão, de união e de convivência amorosa. Há uma verdadeira luta pelo controle dos espaços físicos e isso só nos pode causar dor e tristeza.

Ora, isso não pode continuar acontecendo. A unidade dos cristãos é indispensável para o futuro da humanidade. Não podemos continuar insistindo na paz mundial, se os seguidores daquele que foi considerado “o Senhor da paz” (2Ts 3,16) continuam se digladiando, a começar do local em que, segundo a tradição, teria sido colocado o corpo do Mestre, após a sua crucifixão, e de onde ele teria saído vitorioso sobre a morte. Todos os apelos das Igrejas pela paz no mundo se tornam insignificantes se a humanidade sabe que os cristãos continuam divididos, disputando entre si inclusive a posse pelos “lugares santos”. Os discípulos e as discípulas de Jesus têm o grave dever de buscar a unidade, se não quiserem continuar sendo acusados de serem os responsáveis pelas divisões existentes hoje no mundo. Historicamente o cristianismo é o grande responsável por grandes tragédias mundiais, como a primeira e a segunda guerra mundial. Os países envolvidos nestas tragédias são herdeiros da cultura cristã, incapaz de fomentar, ainda hoje, a harmonia e a paz entre os povos.

No que diz respeito à busca da unidade entre as Igrejas cristãs históricas há que se voltar ao modelo anterior às grandes rupturas entre a Igreja de Roma e a Igreja do Oriente, no século XI, e entre a Igreja Romana e os herdeiros de Lutero e Calvino no século XVI. E o que existia antes? Inicialmente cada Igreja local tinha a sua autonomia, como núcleo de discípulos e discípulas de Jesus. Estas Igrejas, na medida em que iam se constituindo, escolhiam alguém para presidi-las e, consequentemente, para presidir a ceia do Senhor ou Eucaristia. Este presidente tinha nomes diferentes, conforme a cultura do local em que se encontrava a Igreja. Podiam ser chamados de bispos, presbíteros e diáconos. Quando, por acaso, surgia entre elas alguma dificuldade isso era resolvido através de encontros, de reuniões, de sínodos e, mais tarde, de concílios. Tal costume foi introduzido ainda na época dos apóstolos, como nos atestam os escritos neotestamentários (At 15,13-35).

Algum tempo depois, quando as Igrejas adotam o sistema piramidal vigente no Império, os bispos passam a deter o poder de consagrar os novos bispos, os presbíteros e os diáconos. Aos poucos as Igrejas locais vão se constituindo ao redor dos bispos, os quais, sempre segundo o esquema imperial, passam a ter também funções de administração de um grupo de Igrejas locais de uma determinada região. Com o passar do tempo, as Igrejas vão se aglutinando em torno de três grandes Igrejas locais: Roma, Alexandria e Antioquia. Mais tarde, especialmente durante o concílio de Éfeso e de Calcedônia, reconheceu-se o direito de algumas Igrejas locais se reunirem em torno da Igreja de Jerusalém, tido como a primeira Igreja. Em 381 se reconhece a posição da Igreja de Constantinopla, capital do império oriental.

Assim sendo, as Igrejas locais, todas com sua autonomia, vão se congregando em torno de cinco grandes Igrejas que se situavam em pontos estratégicos do Império romano: Roma, Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Constantinopla. E com isso foi se criando a tradição de que os cinco bispos destas Igrejas formavam uma espécie de pentarquia. As cinco Igrejas passam a ser consideradas patriarcados e os cinco bispos, chamados patriarcas, tidos como sucessores dos apóstolos e pastores supremos, são vistos como escolhidos pelo Espírito Santo para guiar a Igreja em posição de igualdade. Isso se baseava numa tradição segundo a qual estas cinco Igrejas eram de origem apostólica, isto é, tinham sido fundadas por apóstolos de Jesus.

Um pouco antes da formação dos patriarcados, provavelmente ainda no final do primeiro século da era cristã, se introduziu o costume de se apelar para a Igreja de Roma, quando surgia algum tipo de problema entre as Igrejas locais. Isto porque não era mais possível reunir todos os bispos que presidiam as Igrejas, uma vez que o número de Igrejas locais tinha aumentado e a realização de um concílio se tornava cada vez mais difícil e oneroso. Muita coisa era resolvida através de sínodos ou concílios regionais ou provinciais. Mas quando não se conseguia um consenso, apelava-se para a Igreja de Roma, cujo bispo era convidado a dar a palavra final sobre o assunto. E o que o bispo de Roma dizia era tido por todas as Igrejas como a palavra definitiva sobre a questão. Disso surgiu a expressão latina: Roma locuta, causa finita est, ou seja, “Roma falou, a causa está encerrada.

Este costume de apelar para Roma surgiu a partir de uma tradição, segundo a qual os apóstolos Pedro e Paulo teriam sido martirizados naquela cidade. E por serem considerados os apóstolos mais representativos do anúncio do Evangelho de Jesus ao mundo (Gl 2,7), a Igreja de Roma passa a ser vista como aquela que tem a primazia sobre as demais Igrejas, ou seja, aquela que pode dar uma palavra final sobre determinadas questões. Porém, inicialmente esta primazia não significava um primado e nem o bispo de Roma era considerado sucessor de Pedro. Não se atribuía ao bispo de Roma as prerrogativas que lhe serão atribuídas mais tarde, inclusive com a interpretação literal de textos bíblicos, como aquele de Mateus (16,17-19).

Uma interpretação desse tipo vai aparecer pela primeira vez no século V, com o papa Bonifácio I (418-422); se radicaliza com o papa Gregório VII. Este papa, reagindo à intromissão de imperadores e príncipes na Igreja, empreende uma reforma que culmina na absolutização do poder papal. Gregório VII (1073-1085) entendia que o poder do papa, tornado automaticamente santo a partir do momento em que era eleito (daí o título de “santidade” ou de “santo padre” atribuído ao papa), estava acima de todos e acima de tudo. Somente o papa recebeu o “poder das chaves”, ou seja, o poder de “ligar e desligar” (Mt 16,19). Por essa razão todas as pessoas da Terra devem se submeter ao seu poder. Tal interpretação chega ao seu auge no final do século XIX, quando o primeiro Concílio realizado no Vaticano, por forte pressão do papa Pio IX, decreta a infalibilidade papal.

Pode-se concluir, então, que a primazia da Igreja de Roma, que vigorou durante o primeiro milênio, não incluía uma centralização de poder absoluto, a ponto de fazer do bispo de Roma um super bispo e da Cúria Romana uma monarquia absoluta, com poderes absolutos, a ponto de intervir autoritariamente e indevidamente sobre a vida das Igrejas locais. A primazia era da caridade, ou seja, para ajudar as Igrejas locais a viverem em paz e concórdia. Jamais foi pensada em termos absolutos, autoritários e de dominação, como lamentavelmente aconteceu no segundo milênio, sendo inclusive uma das causas das muitas divisões na Igreja. Por essa razão, para se chegar à unidade desejada, é indispensável que a Igreja de Roma volte a ser o que era no início, renunciando a todo tipo de autoritarismo e de mando sobre as demais Igrejas. Que volte a ser serviço de caridade para a unidade e não exercício de poder monárquico absoluto sobre todo o cristianismo. É indispensável também que as demais Igrejas, inclusive aquelas nascidas a partir da Reforma, acolham esta função da primazia da Igreja local de Roma. Sem esse esforço mútuo, a unidade entre os cristãos não virá e a mensagem do Evangelho será cada vez mais enfraquecida pelo contra-testemunho da divisão.

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