A
dimensão conflitiva do seguimento de Jesus
Filósofo,
teólogo, escritor e professor universitário
Alguns
sites de notícia vêm mostrando com mais frequência o fato de que, cada vez
mais, grupos católicos ultraconservadores estão entrando em “rota de colisão”
com o papa Francisco e, mais especificamente, com as ideias e as ações do
pontífice. Nota-se, não tanto nesses sites, mas em alguns católicos, certa
perplexidade, como se conflitos no cristianismo fossem coisas negativas ou
novidades. Algumas pessoas ainda vivem mergulhadas na ingenuidade de certo irenismo, ou seja, de que se deve buscar
a unidade a qualquer custo. Alguns ainda acreditam que a unidade deve estar
acima de tudo.
Pensar
assim, além de ser ilusão, é falso.
Jamais podemos esquecer que, como cristãos, somos seguidores de um “bandido”,
crucificado porque se recusou a
negociar com o poder religioso de sua época e de seu povo e com o poder romano
dominador. Recusou uma falsa unidade. O próprio Jesus, segundo as quatro
versões dos Evangelhos, não enganou ninguém e não prometeu tranquilidade,
sombra e água fresca para seus seguidores. Pelo contrário, advertiu severamente
que o seu seguimento era muito perigoso e que a opção por ele e pelo Reino
provocaria divisões muito sérias: “Vocês pensam que eu vim trazer a paz sobre a
terra? Pelo contrário, eu lhes digo, vim trazer divisão” (Lc 12,51). Uma
divisão que chegaria a arrebentar por
completo o núcleo mais duro da sociedade da sua época e de sua cultura: a família. A opção por ele provocaria,
sem dúvida alguma, rupturas profundas entre pai e filho, mãe e filha, sogra e
nora etc. (Lc 12,53). Uma excelente metáfora
para deixar bem claro o que significaria para as pessoas a decisão de
colocar-se no seu seguimento.
O
conflito provocado pelo seguimento de Jesus seria tão violento, a ponto dele
mesmo advertir os discípulos sobre a real possibilidade de perder a vida (Mc 8,34-37). Alguns estudiosos da Bíblia afirmam que
esse “perder a vida” significava concreta e claramente a possibilidade de ser
assassinado pelo sistema religioso e político, morrendo de forma ignominiosa, o
que era considerado, dentro da cultura religiosa da época, uma verdadeira
maldição divina (Gl 3,13). E ao que tudo indica isso deixou os discípulos apavorados, a ponto de Pedro tentar
dissuadir Jesus (Mc 8,32-33), propondo retornar ao modelo que foi proposto ao
Mestre no início de seu ministério: o caminho da fama e do compromisso sem compromisso, o querer agradar as massas (Mc 1,37).
Coisa que Jesus rechaça peremptoriamente (Mc 1,38-39; 8,33).
Porém,
este pressuposto não dá ao cristianismo o direito de ser beligerante, de provocar conflitos ou até massacres, como
lamentavelmente aconteceu no período das Cruzadas e da Inquisição. Os
discípulos e as discípulas de Jesus não provocam conflitos e guerras. Eles
sofrem perseguições e podem ser martirizados por causa de suas opções
concretas. O que o Mestre pede deles e delas é que não fujam do conflito, tendo
que renunciar à profecia ou fazer pactos ambíguos, com a finalidade de salvar a
própria pele. Por isso os textos neotestamentários apresentam dois motivos que podem levar os
seguidores e as seguidoras de Jesus a se encontrarem, de repente, no meio de
conflitos. Esses motivos se tornam também critérios
decisivos para não abandonar o conflito, pois abandoná-lo seria o mesmo que
trair a causa do Mestre.
O primeiro motivo é a defesa do povo, colocando-se contra a
intransigência da religião que oprime, massacra, exige, não usa de
misericórdia, pune, escraviza e excomunga. Como Jesus, os discípulos e as
discípulas precisam, sem meios-termos, denunciar a arrogância do sistema
religioso que, com a sua prepotência, substitui os mandamentos divinos por meros
preceitos humanos (Mc 7,1-23). Ora, tal atitude põe os seguidores e as
seguidoras de Jesus em confronto direto com a religião oficial, representada
antigamente pelos escribas e fariseus, e hoje pela ala ultraconservadora das
Igrejas. Nessa defesa do povo está incluída também uma posição de denúncia
contra os sistemas políticos opressores que exploram o ser humano,
transformando-o em mercadoria, em coisas, em objetos a serem descartados (Tg
5,1-6). A reação do sistema político é violenta e o conflito é certo. Aliás, o
sistema religioso e o sistema político costumam se unir para defender seus
interesses (At 13,50). Por trás de um discurso religioso conservador está
sempre a defesa dos interesses econômicos das elites e poderosos, e todo
discurso político de direita costuma se amparar sempre em sistemas religiosos ultraconservadores.
Assim, por exemplo, na ditadura chilena, Pinochet comungava nas missas
celebradas pelo então núncio Ângelo Sodano, e esse frequentava a casa, os
almoços e os jantares opulentos oferecidos pelo ditador.
O segundo motivo capaz de colocar os
cristãos e as cristãs no meio do conflito – e também critério para não fugir
dele – é a opção pelos pobres,
consequência da atitude de se colocar do lado do povo. Segundo o próprio Jesus,
a Boa-Notícia que ele veio trazer é destinada antes de tudo aos pobres, aos
quais é anunciada a libertação e proclamada o fim da opressão (Lc 4,18-19). Por
isso, desde o início do cristianismo, a opção pelos pobres é um dos sinais da autenticidade do seguimento de
Jesus (Mt 11,4-6). A falta de opção pelos pobres é a expressão mais evidente de
que a comunidade cristã se encontra numa situação de pecado, ou seja, de ruptura com Deus (Tg 2,1-13).
Por essa razão, a unidade sonhada por Jesus para a sua
comunidade (Jo 17,20-21) só pode ser feita em torno desses dois critérios. A
unidade não pode ser imposta a partir de dogmas e de excomunhões e nem também
por meio de consensos genéricos e ambíguos. A unidade se faz única e
exclusivamente a partir da livre adesão
dos discípulos e das discípulas a esses dois princípios. Sem livre adesão não
há unidade; há autoritarismo ou falsidade. Foi o que entenderam as primeiríssimas
comunidades cristãs, ainda no tempo dos apóstolos. Quando surge o primeiro
grande conflito no cristianismo, os apóstolos se reúnem para conversar. E
depois de muito diálogo chegam à conclusão que se devia deixar aos seguidores e
às seguidoras de Jesus a máxima liberdade, exceto
em três coisas indispensáveis e inegociáveis: o rompimento com a idolatria, a
exclusão das uniões ilegítimas (At 15,28-29) e a opção pelos pobres (Gl 2,10).
O rompimento com a idolatria é rompimento com toda religiosidade e religião que
escraviza e desumaniza. A exclusão das uniões ilegítimas significava romper com
uma relação que não considera a mulher como ser humano; uma relação sem
compromisso com a dignidade da companheira. Portanto também uma opção pela
pessoa mais frágil, mais pobre.
Em recente diálogo com David Lyon,
Zygmunt Bauman afirmou que ser ético
não significa ter uma receita para uma vida fácil e confortável. Afirmou também
que ser ético não é conformar-se às normas aceitas e obedecidas pela maioria,
como pensam alguns, mas, quase sempre, resistência
e ruptura com elas. E, quem resiste e
rompe, paga um preço (Vigilância líquida,
Zahar, 2014, p. 140-141). Penso que, olhando atentamente os Evangelhos, se
possa dizer o mesmo do seguimento de Jesus.
Assim sendo, acreditamos que o papa Francisco
já se encontra no meio do conflito e não pensa numa falsa unidade que junte o
que não pode estar junto. Não se pode, por exemplo, juntar a Igreja
representada por João XXIII e a Igreja representada por Pio IX e João Paulo II.
São modelos eclesiológicos inconciliáveis, como a água e o óleo. Mesmo assim, cremos
que Francisco, forçado na recente canonização de papas a juntar partes
inconciliáveis que o sistema religioso anterior uniu artificialmente,
prosseguirá no seguimento de Jesus, convocando a Igreja Católica inteira a
fazer o mesmo. Resta saber se ele encontrará pessoas católicas com a mesma
coragem, ou se irá se deparar cada vez mais com opositores resistentes ou, o
que é pior, com sabotadores
disfarçados de “santos do pau-oco”. Esses “santos”, geralmente vestidos
impecavelmente de clergyman ou de batina, que, embora não afrontem diretamente
o papa, induzirão o povo a permanecer numa religiosidade melosa, idolátrica,
opressora, que esquece os pobres e sofredores, silenciando de propósito acerca
dos recentes apelos do atual pontífice. Vamos esperar para ver ou vamos fazer
alguma coisa?
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