quinta-feira, 15 de maio de 2014

Conjuntura eclesial


A dimensão conflitiva do seguimento de Jesus

 José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Alguns sites de notícia vêm mostrando com mais frequência o fato de que, cada vez mais, grupos católicos ultraconservadores estão entrando em “rota de colisão” com o papa Francisco e, mais especificamente, com as ideias e as ações do pontífice. Nota-se, não tanto nesses sites, mas em alguns católicos, certa perplexidade, como se conflitos no cristianismo fossem coisas negativas ou novidades. Algumas pessoas ainda vivem mergulhadas na ingenuidade de certo irenismo, ou seja, de que se deve buscar a unidade a qualquer custo. Alguns ainda acreditam que a unidade deve estar acima de tudo.

            Pensar assim, além de ser ilusão, é falso. Jamais podemos esquecer que, como cristãos, somos seguidores de um “bandido”, crucificado porque se recusou a negociar com o poder religioso de sua época e de seu povo e com o poder romano dominador. Recusou uma falsa unidade. O próprio Jesus, segundo as quatro versões dos Evangelhos, não enganou ninguém e não prometeu tranquilidade, sombra e água fresca para seus seguidores. Pelo contrário, advertiu severamente que o seu seguimento era muito perigoso e que a opção por ele e pelo Reino provocaria divisões muito sérias: “Vocês pensam que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu lhes digo, vim trazer divisão” (Lc 12,51). Uma divisão que chegaria a arrebentar por completo o núcleo mais duro da sociedade da sua época e de sua cultura: a família. A opção por ele provocaria, sem dúvida alguma, rupturas profundas entre pai e filho, mãe e filha, sogra e nora etc. (Lc 12,53). Uma excelente metáfora para deixar bem claro o que significaria para as pessoas a decisão de colocar-se no seu seguimento.

            O conflito provocado pelo seguimento de Jesus seria tão violento, a ponto dele mesmo advertir os discípulos sobre a real possibilidade de perder a vida (Mc 8,34-37). Alguns estudiosos da Bíblia afirmam que esse “perder a vida” significava concreta e claramente a possibilidade de ser assassinado pelo sistema religioso e político, morrendo de forma ignominiosa, o que era considerado, dentro da cultura religiosa da época, uma verdadeira maldição divina (Gl 3,13). E ao que tudo indica isso deixou os discípulos apavorados, a ponto de Pedro tentar dissuadir Jesus (Mc 8,32-33), propondo retornar ao modelo que foi proposto ao Mestre no início de seu ministério: o caminho da fama e do compromisso sem compromisso, o querer agradar as massas (Mc 1,37). Coisa que Jesus rechaça peremptoriamente (Mc 1,38-39; 8,33).

            Porém, este pressuposto não dá ao cristianismo o direito de ser beligerante, de provocar conflitos ou até massacres, como lamentavelmente aconteceu no período das Cruzadas e da Inquisição. Os discípulos e as discípulas de Jesus não provocam conflitos e guerras. Eles sofrem perseguições e podem ser martirizados por causa de suas opções concretas. O que o Mestre pede deles e delas é que não fujam do conflito, tendo que renunciar à profecia ou fazer pactos ambíguos, com a finalidade de salvar a própria pele. Por isso os textos neotestamentários apresentam dois motivos que podem levar os seguidores e as seguidoras de Jesus a se encontrarem, de repente, no meio de conflitos. Esses motivos se tornam também critérios decisivos para não abandonar o conflito, pois abandoná-lo seria o mesmo que trair a causa do Mestre.

            O primeiro motivo é a defesa do povo, colocando-se contra a intransigência da religião que oprime, massacra, exige, não usa de misericórdia, pune, escraviza e excomunga. Como Jesus, os discípulos e as discípulas precisam, sem meios-termos, denunciar a arrogância do sistema religioso que, com a sua prepotência, substitui os mandamentos divinos por meros preceitos humanos (Mc 7,1-23). Ora, tal atitude põe os seguidores e as seguidoras de Jesus em confronto direto com a religião oficial, representada antigamente pelos escribas e fariseus, e hoje pela ala ultraconservadora das Igrejas. Nessa defesa do povo está incluída também uma posição de denúncia contra os sistemas políticos opressores que exploram o ser humano, transformando-o em mercadoria, em coisas, em objetos a serem descartados (Tg 5,1-6). A reação do sistema político é violenta e o conflito é certo. Aliás, o sistema religioso e o sistema político costumam se unir para defender seus interesses (At 13,50). Por trás de um discurso religioso conservador está sempre a defesa dos interesses econômicos das elites e poderosos, e todo discurso político de direita costuma se amparar sempre em sistemas religiosos ultraconservadores. Assim, por exemplo, na ditadura chilena, Pinochet comungava nas missas celebradas pelo então núncio Ângelo Sodano, e esse frequentava a casa, os almoços e os jantares opulentos oferecidos pelo ditador.

            O segundo motivo capaz de colocar os cristãos e as cristãs no meio do conflito – e também critério para não fugir dele – é a opção pelos pobres, consequência da atitude de se colocar do lado do povo. Segundo o próprio Jesus, a Boa-Notícia que ele veio trazer é destinada antes de tudo aos pobres, aos quais é anunciada a libertação e proclamada o fim da opressão (Lc 4,18-19). Por isso, desde o início do cristianismo, a opção pelos pobres é um dos sinais da autenticidade do seguimento de Jesus (Mt 11,4-6). A falta de opção pelos pobres é a expressão mais evidente de que a comunidade cristã se encontra numa situação de pecado, ou seja, de ruptura com Deus (Tg 2,1-13).

            Por essa razão, a unidade sonhada por Jesus para a sua comunidade (Jo 17,20-21) só pode ser feita em torno desses dois critérios. A unidade não pode ser imposta a partir de dogmas e de excomunhões e nem também por meio de consensos genéricos e ambíguos. A unidade se faz única e exclusivamente a partir da livre adesão dos discípulos e das discípulas a esses dois princípios. Sem livre adesão não há unidade; há autoritarismo ou falsidade. Foi o que entenderam as primeiríssimas comunidades cristãs, ainda no tempo dos apóstolos. Quando surge o primeiro grande conflito no cristianismo, os apóstolos se reúnem para conversar. E depois de muito diálogo chegam à conclusão que se devia deixar aos seguidores e às seguidoras de Jesus a máxima liberdade, exceto em três coisas indispensáveis e inegociáveis: o rompimento com a idolatria, a exclusão das uniões ilegítimas (At 15,28-29) e a opção pelos pobres (Gl 2,10). O rompimento com a idolatria é rompimento com toda religiosidade e religião que escraviza e desumaniza. A exclusão das uniões ilegítimas significava romper com uma relação que não considera a mulher como ser humano; uma relação sem compromisso com a dignidade da companheira. Portanto também uma opção pela pessoa mais frágil, mais pobre.

            Em recente diálogo com David Lyon, Zygmunt Bauman afirmou que ser ético não significa ter uma receita para uma vida fácil e confortável. Afirmou também que ser ético não é conformar-se às normas aceitas e obedecidas pela maioria, como pensam alguns, mas, quase sempre, resistência e ruptura com elas. E, quem resiste e rompe, paga um preço (Vigilância líquida, Zahar, 2014, p. 140-141). Penso que, olhando atentamente os Evangelhos, se possa dizer o mesmo do seguimento de Jesus.

Assim sendo, acreditamos que o papa Francisco já se encontra no meio do conflito e não pensa numa falsa unidade que junte o que não pode estar junto. Não se pode, por exemplo, juntar a Igreja representada por João XXIII e a Igreja representada por Pio IX e João Paulo II. São modelos eclesiológicos inconciliáveis, como a água e o óleo. Mesmo assim, cremos que Francisco, forçado na recente canonização de papas a juntar partes inconciliáveis que o sistema religioso anterior uniu artificialmente, prosseguirá no seguimento de Jesus, convocando a Igreja Católica inteira a fazer o mesmo. Resta saber se ele encontrará pessoas católicas com a mesma coragem, ou se irá se deparar cada vez mais com opositores resistentes ou, o que é pior, com sabotadores disfarçados de “santos do pau-oco”. Esses “santos”, geralmente vestidos impecavelmente de clergyman ou de batina, que, embora não afrontem diretamente o papa, induzirão o povo a permanecer numa religiosidade melosa, idolátrica, opressora, que esquece os pobres e sofredores, silenciando de propósito acerca dos recentes apelos do atual pontífice. Vamos esperar para ver ou vamos fazer alguma coisa?

 

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