Uma
discípula a caminho de Emaús?
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo,
teólogo, escritor e professor universitário
No terceiro domingo de
Páscoa do ciclo do Ano A costuma-se ler, na liturgia dominical da Igreja
Católica Romana, o trecho do evangelho de Lucas, conhecido como “aparição de
Jesus aos discípulos de Emaús” (Lc 24,13-35). Quem seriam esses discípulos? O
texto original grego não diz. Aliás, nem usa o termo “discípulos” (mathetàs), mas a expressão grega “dúo éx autôn”, que a versão ecumênica da
Bíblia traduz como “dois dentre eles”. Poderia ser um casal? Por que não? Tenho
comigo uma reprodução de um lindo mural da cena de Emaús pintado pela irmã
scalabriniana Elda Broilo, na qual ela representa estes dois como sendo um
casal, acompanhado inclusive de uma criancinha. Esta leitura seria totalmente
legítima e normal, uma vez que, segundo o próprio Lucas, no grupo de discípulos
de Jesus havia também discípulas (Lc 8,1-3), que não somente o acompanhavam,
mas sustentavam o grupo com seus bens.
Tudo seria tranquilo, se não
fosse o machismo imperante nas Igrejas,
de modo particular na Igreja Católica Romana. Lembro-me bem que em 2002, quando
a CNBB completava 50 anos, durante a assembleia geral dos bispos, fomos no
terceiro domingo de Páscoa para uma celebração eucarística no santuário de
Aparecida. A comissão litúrgica da CNBB preparou uma encenação desse trecho do
evangelho e, na encenação, colocou um discípulo e uma discípula (um casal).
Isso despertou a ira de muitos bispos que apresentaram veementes protestos
junto ao bispo responsável pela Comissão de Liturgia.
Para alguns desses bispos a
encenação não era ortodoxa porque abria brechas para a possibilidade de se
acreditar que também mulheres podiam receber os ministérios ordenados. Ora, a
interpretação, além de ser esdrúxula e descabida, empobrece o próprio texto
bíblico, uma vez que a intenção de Lucas não foi acentuar a questão dos
ministérios ordenados. Lucas quis apenas mostrar a crise provocada nos
discípulos pelo escândalo da cruz de Jesus, levando-os inclusive à perda da fé;
fé que depois é recuperada e revigorada quando o Senhor ressuscitado parte e
reparte o pão diante deles. Toda interpretação que for além, é mera fantasia e
tentativa de forçar o texto a dizer o que ele nunca quis dizer.
Esse
episódio, acontecido em Aparecida, evidencia a necessidade de se rever a ótica
machista, através da qual se continua lendo a Bíblia para excluir as mulheres
de funções importantes na Igreja, inclusive o seu acesso a algumas coordenações
de organismos eclesiásticos, de modo particular o acesso às instâncias de poder
e de decisão e aos ministérios ordenados. Costuma-se justificar a proibição às
mulheres com o argumento de que Jesus era do sexo masculino. E como algumas
funções, como os ministérios ordenados, implicam uma dimensão sacramental, no
sentido de que o ministro ordenado age “in persona Christi”, as mulheres não
poderiam exercer de modo completo esta sacramentalidade.
Ora,
esse tipo de argumento não pode ser mais aceito porque o Segundo Testamento, em
nenhum momento, realça a importância disso. O
que o Segundo Testamento considera relevante, sacramental, em primeiro lugar, é
o fato de que o Filho de Deus se tornou humano, igual a nós em tudo, exceto no
pecado (Hb 4,15). Os textos bíblicos não ressaltam o fato de que o Filho se
tornou um humano do sexo masculino, mas que se tornou totalmente humano.
O
apóstolo Paulo deixa isso bem claro quando afirma que o fato marcante que está na origem do cristianismo não é que Cristo
tenha nascido varão, mas que na plenitude dos tempos, ou seja, na hora certa,
Deus nos enviou o seu Filho nascido de
mulher para pagar a nossa alforria
e realizar a nossa libertação (Gl 4,4-5). Esses detalhes podem passar
despercebidos hoje, mas eram sumamente revolucionários no contexto cultural
desta carta paulina, no qual predominavam o machismo e a escravidão. Numa época
e numa cultura em que a genealogia da pessoa se fazia através de seus
ancestrais masculinos, afirmar que Deus mandou o seu Filho “nascido de mulher”
arrebentava por completo tal concepção machista. Paulo declara que no
cristianismo não conta mais a condição sexuada da pessoa, o ser homem ou
mulher, mas a inserção em Cristo (Gl 3, 28). Por isso somos todos e todas
iguais, não no sentido de que o direito à diferença foi abolido, mas no sentido
que todos e todas somos herdeiros ou herdeiras da mesma promessa (Gl 3,29).
Logo, impedir a mulher de ter acesso a determinados espaços nas Igrejas com uma
justificativa sexista é um absurdo total do ponto de vista bíblico.
Neste
sentido é que deve ser entendida a expressão dos Evangelhos, que costumamos
traduzir em português com os termos “o Filho do Homem” (em grego: ‘o uiós toú anthropos). O termo
“anthropos” em grego não significa o ser humano do sexo masculino, mas a
humanidade, o ser humano em geral. Quando o Segundo Testamento quer falar do
varão, da pessoa do sexo masculino, do macho, usa as palavras gregas andros (At 17,12) e aner (Mt 1,19).
O
segundo elemento importante, destacado pelos escritos neotestamentários, é que
este “Filho da humanidade” decidiu assumir plenamente uma das mais profundas
características dessa humanidade: a
fragilidade, a fraqueza. Para o Segundo Testamento o que conta não é que
Jesus seja macho, mas que é plenamente humano a ponto de abraçar também a nossa
condição de seres frágeis e fragilizados. Coisa que, aliás, choca a mentalidade
machista, segundo a qual “homem que é homem não chora”, ou seja, macho não
demonstra fraqueza. Isso fica bem evidente quando o Segundo Testamento afirma
que o Filho de Deus se manifestou e se fez sárx
(Jo 1,14; 1Tm 3,16), termo grego que costuma ser traduzido com a palavra
“carne”, mas cujo sentido verdadeiro é o de fragilidade, de fraqueza humana.
Por
fim, o terceiro aspecto evidenciado pela Bíblia cristã é o fato de que este
Filho de Deus plenamente humanizado assume a fragilidade humana na sua condição
mais extrema que é o despojamento, o rebaixamento
humilhante, aceitando viver como
escravo, morrer e morrer da pior maneira possível para aquela época (Fl 2,6-8).
Essa disposição livre e soberana de Jesus de aceitar a condição de profunda
humilhação, expressa pelo termo grego kénosis
(Fl 2,7), é que permite a Jesus cumprir a vontade do Pai e realizar a
libertação do universo e da humanidade. Não é a sua condição de macho, de
varão, que lhe dá essa possibilidade, mas a sua disposição em assumir a
condição humana também neste aspecto.
Fica,
pois, bem evidente que não se pode fundamentar a exclusão das mulheres das
funções de poder e de decisão e dos ministérios ordenados com a desculpa de que
Jesus era do sexo masculino e que, por isso, elas não estariam em condições de
agir “in persona Christi”. Também não vale aquelas desculpas, como a de que
Jesus não teria permitido que mulheres participassem de sua última ceia.
Estudos sérios, que levam em conta o contexto da narrativa e o contexto
cultural da época, não permitem chegar a tal conclusão. Seria simplesmente
estúpido e ridículo que Jesus, naquele momento significativo de sua existência
e de seu ministério, tivesse impedido as mulheres, que o acompanhavam desde a
Galileia (Lc 8,1-3) e que estavam com ele em Jerusalém no momento de sua
crucifixão e sepultura (Lc 24,10; Mc 15,40), de participar de sua última ceia.
Não se trata de dar mais
poderes às mulheres, mas de, a partir da dignidade que vem do Batismo, abrir
mais espaços para elas nas Igrejas, de modo que possam exercer serviços
eclesiais que hoje estão reservados aos varões. Trata-se de reparar uma
injustiça que fere a dignidade cristã.
Havemos,
portanto, de concluir que a ampliação dos espaços da Igreja para uma presença
feminina mais incisiva, como pediu recentemente o papa Francisco (EG, 103), só
acontecerá de fato quando rompermos a barreira da exclusão das mulheres dos
ministérios ordenados e das funções de direção e de decisão. Enquanto isso não
acontecer estaremos apenas “dourando a pílula” ou tentando tapar o sol com uma
peneira, uma vez que todos os outros espaços já estão sendo ocupados pelas
mulheres e sem elas as Igrejas deixariam de existir. Mas para avançarmos nesta
direção é preciso deixar de fazer leitura machista da Bíblia. É preciso parar
de fazer leitura fundamentalista dos textos sagrados e aceitar, com mais
serenidade e verdade, as implicações de uma correta e honesta hermenêutica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário