Nova tentativa
de assassinato da Teologia da Libertação
José Lisboa
Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo,
escritor e professor universitário
A Teologia da
Libertação (TdL) foi gestada na 2ª Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano (CELAM), realizada em 1968 em Medellín, na Colômbia. Naquela
ocasião os bispos do nosso continente tentaram aplicar o Concílio Vaticano II à
realidade que marcava a vida dos nossos povos e dos nossos países. Logo depois,
a TdL foi sistematizada pela obra de Gustavo Gutiérrez e de outros teólogos, os
quais tentaram fazer uma reflexão teológica que desenvolvesse a intuição de
Medellín, que era centrar a sua atenção sobre o ser humano do continente,
frustrado em suas legítimas aspirações, devido às enormes injustiças e à
opressão que assolavam os diversos países.
Depois de alguns anos de aceitação e de esforço para
traduzir na prática as suas intuições, a TdL passou a ser incompreendida e perseguida.
Isso aconteceu de modo particular a partir de 1978, com o início do pontificado
do polaco Wojtyla. Este papa, assessorado por uma Cúria ultraconservadora, foi
podando sistematicamente e cruamente todas as iniciativas da Igreja da
Libertação. Censurou e até cassou alguns dos mais renomados teólogos da
libertação, nomeou bispos tradicionalistas e perseguiu aqueles que tinham
desenvolvido em suas dioceses uma pastoral da libertação. Esta política
continuou no pontificado do alemão Ratzinger. Com a chegada do papa Francisco
houve uma diminuição da perseguição, mas ainda existem resquícios de tentativas
de assassinato da TdL.
A mais recente tentativa de assassinato aconteceu
poucos dias atrás. Segundo informação do site do Instituto Humanitas da
Unisinos, os membros da presidência do CELAM, em sua visita anual à Santa Sé,
afirmaram em entrevista que a TdL está “muito velha, se não é que já está
morta”. Embora tenha reconhecido os esforços dos teólogos da libertação, o
presidente do CELAM, dom Carlos Aguiar Retes, disse que depois da TdL “temos
uma reflexão teológica mais sapiencial” que abandonou a luta de classes e a
confrontação entre ricos e pobres. Com estas afirmações o ilustre prelado,
presidente do CELAM, tentou desacreditar
a TdL: ela está velha ou morta e não é uma teologia “sapiencial”.
Os membros da presidência do CELAM, resquícios de um
episcopado alinhado com a Cúria Romana de Wojtyla e Ratzinger, ainda tentam
sufocar uma teologia original, autêntica e que incomodou muita gente, especialmente os empacotados de roxo e os
purpurados que frequentavam as luxuosas casas e as cozinhas das “raposas” (Lc
13,32) que patrocinaram a opressão, a injustiça e a miséria em nosso
continente.
Mas um simples olhar mostra que a TdL não morreu e nem envelheceu. Ela
continua nova e vigorosa, antes de tudo no legado
que nos foi deixado por pastores como Oscar Romero, Dom Hélder Câmara, Dom
Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Angélico Sândalo Bernardino,
só para citar alguns nomes. O legado desses pastores da libertação ultrapassou
as fronteiras da própria Igreja Católica Romana e as fronteiras do tempo. Hoje,
no mundo, centenas de milhares de mulheres e homens continuam a testemunhar a
sua fé, graças ao testemunho desses pastores da libertação. Milhares de
iniciativas surgiram por conta da ação pastoral desses bispos católicos e
continuam existindo e agindo, apesar dos ventos que sopram em sentido
contrário.
Também alguns bispos e pastores de outras Igrejas irmãs, como a Igreja de
Confissão Luterana, a Igreja Anglicana, a Igreja Metodista, a Igreja Presbiteriana,
descobriram na TdL o caminho para uma ação mais incisiva em nosso continente e
no mundo. Não posso deixar de lembrar a figura de dois representantes destas
Igrejas: o pastor presbiteriano Jaime Wright e o pastor luterano Milton
Schwantes, verdadeiros ícones das Igrejas da Reforma no Brasil e que
encontraram na TdL o caminho para a evangelização. Ainda hoje homens e mulheres
dessas Igrejas, teólogas e teólogos, pastoras e pastores desenvolvem suas
atividades de anúncio da Boa-Notícia tendo como ponto de apoio a TdL. Sem falar
depois nas inúmeras iniciativas ecumênicas ainda hoje em pleno vigor e que
tiveram o seu berço na TdL. Basta lembrar, por exemplo, o Centro de Estudos
Bíblicos (CEBI) com a sua vasta produção de subsídios para a animação bíblica
popular. Por fim, cabe lembrar também a maravilhosa experiência das Comunidades
Eclesiais de Base, expressão máxima de uma Igreja que bebe na fonte da libertação.
Alguns tentam hoje minimizar essas comunidades, mas elas continuam aí,
existindo como jeito novo de ser Igreja. No último Intereclesial, realizado no
início deste ano em Juazeiro do Norte (CE), a terra do Padim Ciço, elas
mostraram a sua força e a sua pujança.
No campo da reflexão teológica, depois da chegada do
papa Francisco, houve uma retomada da TdL, até então sufocada e proibida pelos
monsenhores curiais. O pai da TdL, Gustavo Gutiérrez, publicou recentemente com
o Cardeal Gerhard Ludwig Müller , atual Prefeito da Congregação Vaticana para a
Doutrina da Fé, um texto no qual retomam os principais elementos dessa teologia.
O livro, originalmente escrito em alemão, foi traduzido para o português e
publicado no início deste ano por Edições Paulinas, com o título: Ao lado dos pobres. Teologia da Libertação.
Muito significativa a intervenção do Cardeal Müller, especialmente no capítulo
quatro do livro, no qual o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé fala
das controvérsias em torno da TdL. Antes de tudo o Cardeal Müller reconhece a
sua legitimidade, afirma a sua necessidade para a Igreja e diz tratar-se de uma
autêntica teologia. Lembra que a teologia latino-americana ajudou a corrigir a
“clássica doutrina social da Igreja”, construída a partir de um dualismo entre
mundo natural e mundo sobrenatural.
O Cardeal Müller reconhece também a legitimidade da mediação socioanalítica, lembrando inclusive que esse tipo de
recurso não é novidade na teologia católica. Grandes teólogos, como Tomás de
Aquino, já tinham utilizado tal método, uma vez que é impossível fazer teologia
abstrata, ou seja, sem partir da realidade. O Cardeal chega mesmo a reconhecer
a importância da mediação da análise
marxista e até da referência à luta
de classes, lembrando-nos que o marxismo não deve ser confundido com o
totalitarismo ideológico leninista e stalinista. Aliás, diga-se de passagem, foram
os teóricos do capitalismo, que não conheciam o pensamento marxista, que
confundiram Marx com Lênin e Stalin. Para o Cardeal Müller, ao mencionar a luta
de classes, a TdL não entende desenvolver uma guerra de eliminação de uma
classe, mas apenas lembrar que “a história não se desenvolve a partir do
desenvolvimento harmônico de suas virtualidades, mas mediante o antagonismo de
princípios e de interesses opostos”. A menção à luta de classes é um convite a
participar “na luta da graça contra o pecado e, concretamente, também, de uma
encarnação da salvação nas estruturas sociais promotoras da vida e uma
superação do pecado e de sua objetivação em sistemas exploradores”. Isso porque
“a graça e o pecado não existem simplesmente de modo puramente idealista e
espiritualista em si, mas sempre unicamente junto com sua encarnação e
materialização nas condições de vida humanas”.
A fala da presidência do CELAM tem um lado positivo: mostra que no
momento, em Roma, há um clima de distensão, de mais respeito e de mais diálogo.
Até alguns meses atrás seria impensável que bispos discordassem abertamente do
pensamento do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Tal discordância era
punida severamente, mesmo que fosse apenas com o puro isolamento e descrédito
dos interessados. A presidência do CELAM ousou discordar do Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, que, como vimos, tem outro olhar sobre a
TdL. E isso é positivo.
Porém, é lamentável que tenham tentado, a partir de Roma, decretar a
caduquice e a morte da TdL; tenham efetivado mais uma tentativa de assassinato
da teologia latino-americana. É lamentável porque foram essas tentativas que
fizeram a Igreja Católica regredir em nosso continente, perdendo a
credibilidade e um número cada vez mais expressivo de fiéis, como têm apontado
as recentes pesquisas, mesmo que os eclesiásticos queiram minimizar esses
dados. Na Europa, onde a TdL nunca foi admitida, o catolicismo agoniza, a
Igreja envelhece rapidamente, tornando-se cada dia mais feminil e senil. Os
prelados do CELAM deveriam aprender com o europeu Cardeal Müller, o qual afirma
no texto acima mencionado que a Igreja, tanto no nosso continente como no mundo
inteiro, “não pode renunciar à continuação e ao uso da Teologia da Libertação”,
pois “a pretensão metodológica da Teologia da Libertação, de empregar uma
práxis transformadora, outra coisa não é senão a nova formulação do evento
original da teologia em absoluto”. Por isso, no “contexto regional e para a
comunicação teológica mundo afora, a Teologia da Libertação é imprescindível”
(p. 109).
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