VRC com
prazo de validade vencido
José
Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo,
teólogo, escritor e professor universitário
Tem
circulado na internet um artigo do Pe. Alfredo Gonçalves, scalabriniano,
conhecido também como Pe. Alfredinho. Tive a grata satisfação de ser colega do
Pe. Alfredinho na CNBB, quando ele era assessor das Pastorais Sociais e eu
assessor do Setor Vocações e Ministérios. Nutro por ele uma grande
consideração. O referido artigo, com o título “Vocações com prazo de validade”
questiona a juventude e o modo de agir dos jovens de hoje que chegam à Vida
Religiosa Consagrada (VRC). Mesmo conhecendo o autor do artigo e acreditando na
sua “boa intenção”, não posso deixar de discordar de alguns aspectos do seu texto.
Depois
de ler o artigo do Pe. Alfredinho fiquei com a sensação de que ele culpabiliza os jovens de hoje e a
sociedade “pela arte do disfarce, da dissimulação e do engano”. Eles são
culpados por cultivarem “motivações oblíquas e obtusas para pavimentar o
caminho que leva à VRC”. Desenvolvem uma “capacidade inegável de camaleão”.
Eles “abraçam a vida religiosa sem qualquer compromisso”, diluindo “no oceano
nebuloso e fugidio da modernidade” instituições históricas portadoras de um
grande patrimônio e de autênticas tradições. Essa juventude transviada volatiza
ou liquidifica os valores sólidos e solidamente enraizados em compromissos
duradouros, transformando experiência em experimento. Por trás dessa juventude
“líquida” estaria a sociedade contemporânea que, controlada pelo “mercado de
consumo”, dita as suas leis, especialmente nesses tempos de avanço da
informática que, embora útil, não deixa de, através de suas “mensagens
eletrônico-virtuais”, destruir amizades, amores e até noivados.
Tudo
isso seria suportável se não faltasse alguma coisa essencial. Em seu artigo o Pe. Alfredinho omite por completo
qualquer referência à responsabilidade
das instituições eclesiásticas, como é o caso da VRC. Se existem “vocações com
prazo de validade” é porque existem também instituições eclesiástica com “prazo
de validade vencido”. O atual estilo ou formato de VRC está superado há muito
tempo. O próprio Concílio Vaticano II, através do parágrafo 2 do Decreto Perfectae Caritatis, já reconhecia esse
fato e pedia às congregações religiosas que realizassem uma profunda mudança,
voltando às origens, ou seja ao Evangelho. Mas, nesses cinquenta anos que nos
separam do Vaticano II, não houve uma revolução
no estilo da VRC. Tivemos algumas tentativas, como foi o caso da inserção aqui na América Latina. Mas, no
seu conjunto, a VRC, no seu modus vivendi
(modo de ser) e no seu modus faciendi
(modo de agir), continua esclerosada, superada, ultrapassada. Ela ainda se
pauta por um estilo tipicamente medieval e, pior ainda, da Contrarreforma.
Já
na primeira metade dos anos 1970 o jesuíta Raimundo Hostie publicou o resultado
de uma pesquisa, na qual salientava muito bem essa questão. Na metade dos anos
1990 Felicísimo Martinez Díez, por meio do seu livro Vida Religiosa: carisma e missão (Paulus) evidenciava o completo
falimento do atual modelo de VRC e chegava à conclusão de que, para algumas
congregações, só restava a morte como
futuro. Trazendo dados interessantes Hostie e Díez mostravam que 75% das ordens
e congregações fundadas já morreram, já foram extintas. E dizem, sem pudor, que
a “causa mortis” destes institutos teria sido a “esclerose múltipla
institucional”, causada pelo distanciamento das origens e pela absorção de um
estilo de vida distante da radicalidade inicial.
As
pesquisas e os estudos realizados por Rulla, Manenti, Cencini e outros
pesquisadores, especialmente da Faculdade de Psicologia da Universidade
Gregoriana de Roma, dão conta de que, na dinâmica da psicologia da vocação, os semelhantes se atraem. Logo, se chegam
até às congregações e seminários “vocações com prazo de validade” é porque
foram atraídas por instituições semelhantes. Os pesquisadores mencionados chamam
a atenção para a importância da propaganda
vocacional das instituições eclesiásticas que atrai somente aquelas pessoas que se identificam com elas. Portanto, a
responsabilidade ética e moral das instituições eclesiásticas pelos casos das
“vocações com prazo de validade” é indiscutível. São elas que, com seu estilo,
atraem este tipo de jovem vocacionado.
Além
do mais é preciso distinguir claramente a
vocação das formas concretas históricas que ela assume no decorrer do
tempo. É preciso dizer com toda a ênfase que só existe uma única vocação: o chamamento divino para ser pessoa humana (Gn
1,27-31) e para seguir Jesus Cristo (Mc 1,16-20). O Vaticano II, na Lumen Gentium (cap. V), chamou isso de vocação universal à santidade. O que vem
depois é consequência disso. Assim sendo é perfeitamente possível, do ponto de
vista bíblico e teológico, que alguém, para viver plenamente a sua vocação
humana e cristã, possa mudar a sua forma concreta, histórica, no decorrer dos
anos (1Cor 7,17-35). O problema é que a Igreja, a partir do IV século, vai
absolutizando a vocação específica do padre, do frade e da freira, como sendo
as únicas e verdadeiras vocações. Por isso não se aceita a possibilidade de que
uma pessoa deixe a vida religiosa ou o exercício do ministério. Isso é visto
como traição. Confunde-se a vocação humana e cristã com suas formas
momentâneas. Porém, muitas vezes, as pessoas, para não traírem a vocação
fundamental, precisam se distanciar de determinadas formas específicas
esclerosadas, arcaicas e ultrapassadas.
Outro
aspecto a considerar é de ordem teológica
e tem a ver com a fé. Deus não deixou de chamar pessoas para que vivam
intensamente a sua humanidade e para seguir Jesus Cristo. E é preciso afirmar
claramente que Deus não chama desmiolados, mas pessoas sérias. Às vezes existem
momento de crise (1Sm 3,1), mas a responsabilidade não é de Deus, mas da
mediação humana. Aqueles que são encarregados de comunicar o chamamento divino
se corrompem e impedem que Deus chame através deles (1Sm 2,12-36).
Cabe,
porém, esclarecer que essas vocações sérias chamadas por Deus não obedecem padrões e critérios convencionais
estabelecidos pela instituição eclesiástica (1Sm 16,6-7). Deus é livre de
chamar quem ele quer. Por isso, muitas vocações são rejeitadas pelas
instituições eclesiásticas porque não se encaixam nas “formas” por elas
estabelecidas. Terminam permanecendo apenas aquelas subservientes, bajuladoras,
carreiristas, oportunistas etc. Mas é preciso também evidenciar que Deus não
chama pessoas “boazinhas”. Ele tem preferência por aquelas que fogem completamente
dos padrões convencionais das instituições eclesiásticas (1Cor 1,26-30). Basta
dar uma olhada no grupo que Jesus escolheu para se perceber essa verdade.
Todos, sem exceção, tinham defeitos (Mc 8,14-21). No grupo havia carreiristas
(Mc 10,35-37), covardes (Mc 14,66-72) e até ladrão (Jo 12,6). Portanto, as
instituições eclesiásticas precisam admitir o princípio de que Deus continua
chamando e chamando pessoas assim, com a ideia de que vocação tem “prazo de
validade”. Cabe-lhes a responsabilidade de educá-las para a radicalidade
evangélica. Desta forma, o fracasso não está nos jovens e na sociedade, mas no
modelo eclesiástico incapaz de transformar os jovens “camaleônicos” em
discípulos e discípulas corajosos de Jesus (Mc 16,20; Lc 24,33-35). E a sua
incapacidade advém do seu estilo pouco evangélico e mais identificado com os
“tiranos deste mundo” (Mc 10,42-43).
Lamentavelmente
o Pe. Alfredinho usa, no seu artigo, uma pedagogia
que a Igreja vem usando há séculos, mas que nunca funcionou, a não ser para
afastar dela as pessoas. Trata-se de considerar a instituição eclesiástica como
infalível e, por causa disso,
atribuir todos os males à humanidade e ao mundo. Por esse motivo, na Idade
Média, a hierarquia da Igreja Católica Romana não quis dialogar com as pessoas
que pensavam diferente, preferindo queimá-las ou enforca-las através da “santa Inquisição”.
Se tivesse dialogado a doutrina católica, hoje, seria bem diferente e ela não
carregaria na sua história um dos seus piores estigmas. Na Idade Moderna não
quis dialogar com o iluminismo e com a ciência, preferindo fechar-se em
concepções arcaicas e ultrapassadas que ainda hoje fazem rir. Por fim, na idade
contemporânea, se opôs decididamente contra as grandes conquistas da humanidade
como a autonomia, a liberdade, a democracia, o socialismo e a liberdade de
consciência. E no apagar das luzes do século XIX, o papa Pio IX ainda condenava
e excomungava quem aderisse a essas ideias. O resultado foi que estas coisas
foram conquistadas apesar da Igreja e, quase sempre, contra ela.
Infelizmente,
como afirmou recentemente um teólogo, a instituição eclesiástica continua com a
sua “incapacidade de sequer perceber que estruturas precisam ser modificadas.
Os respectivos portadores de decisões fecham-se, numa verdadeira cegueira
diante do sistema, contra a intelecção necessária” (BLANK, Renold. Deus e sua criação, Paulus, 2013, p.
104). Mas os cristãos e as cristãs são chamados por Deus “para modificar também
todas aquelas estruturas que não correspondem a sua vontade e a suas ideias” (ibidem). E não só. Terão que abolir
todas as condições que levaram ao surgimento dessas estruturas que precisam ser
mudadas.
Seria, pois,
desejável que o Pe. Alfredinho revisse o seu artigo e não culpabilizasse apenas
os jovens e a sociedade, mas deixasse bem clara a responsabilidade das
instituições eclesiásticas pelo fenômeno das vocações “com prazo de validade”.
É preciso, com muita humildade, reconhecer que tais instituições, inclusive a
VRC, estão viciadas, dominadas por estruturas
de pecado que corrompem até mesmo as pessoas mais inocentes e bem intencionadas.
Os recentes acontecimentos no interior da Igreja não nos deixam mentir.
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