quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Advento


Advento: “quem sabe faz a hora”

 José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            No cristianismo, especialmente no Catolicismo Romano, a celebração do Natal é sempre precedida de um tempo de preparação conhecido como Advento. São quatro semanas nas quais os cristãos e as cristãs se preparam para celebrar o nascimento de Jesus. São características do Advento as atitudes de espera e de expectativa. A atitude da espera remonta ao tempo dos reis, quando estes costumavam visitar alguma cidade ou algum lugar. O povo ficava esperando o rei e essa espera se revestia ao mesmo tempo de expectativa acerca daquilo que o rei iria trazer para os súditos. Na maioria das vezes a espera e a expectativa eram revestidas de muita angústia, um vez que a visita de um rei quase sempre significava más notícias para o povo: mais impostos, mais decretos, mais opressão etc. Por essa razão esse tempo de espera era acompanhado de muita passividade, exceto quando alguns cidadãos mais exaltados resolviam se rebelar contra o rei e espera-lo com uma revolta, a qual geralmente era sufocada brutalmente pelo exército do rei.

            Na liturgia cristã a espera e a expectativa, típicas do tempo do Advento, têm uma conotação bem diferente. Não se trata de esperar um rei poderoso que vai chegar, trazendo más notícias para os seus súditos. Por isso não é um tempo de angústia e de tristeza, mas de uma expectativa alegre, uma vez que aquele que vai chegar é alguém profundamente simples e humilde; uma criança totalmente dependente e carente de tudo. E, enquanto criança carente e dependente, não mete medo. Pelo contrário, suscita nas pessoas sentimentos de ternura, de compaixão e de confiança. A espera cristã, da qual fazemos memória no Advento, também não é uma espera passiva, mas um convite a confiar e agir, pois aquele que vai chegar nos anima na direção do engajamento e do compromisso.

            Todo e qualquer tempo litúrgico que celebramos na Igreja tem como finalidade nos lembrar uma dimensão permanente da existência cristã. Não se trata de viver determinadas atitudes por um período e depois nos esquecermos totalmente delas. Nesse sentido, o tempo do Advento quer nos chamar a atenção para uma dimensão constante da existência cristã. Todo cristão, toda cristã, toda comunidade eclesial precisa viver num permanente estado de espera e de expectativa do Senhor que está para vir. A Igreja aproveita da celebração do Natal para relembrar, durante quatro semanas que o antecedem, esta condição permanente da vida cristã. A espera e a expectativa cristãs não devem acontecer apenas no período do Advento, mas durante toda a vida de um cristão e de uma cristã. As primeiras comunidades cristãs perceberam isso com muita nitidez. Em suas reuniões e celebrações costumavam suplicar: Maranatá, expressão aramaica que literalmente significa “vem Senhor” (Ap 22,20; 1Cor 16,22). Aliás, uma expressão já usada pelos judeus, antes do cristianismo. Normalmente quando um judeu encontrava outro judeu costumava dirigir-se a ele com essa expressão, manifestando a sua crença na eminente vinda do Messias.

            Enquanto dimensão permanente da vida cristã o Advento, a espera e a expectativa expressam antes de tudo a convicção de que o Deus de Jesus se manifesta sempre na história, ou seja, na realidade da vida cotidiana. Ele se faz sempre presente em nossa existência, convidando-nos ao seguimento de seu Filho e a nos engajarmos em ações concretas que revelem a presença do Reinado de Deus no meio de nós.

Porém, a característica principal dessa manifestação é a surpresa. Deus não avisa que ele vai chegar, que ele vai se manifestar, que ele vai se revelar às pessoas e às comunidades. Ele chega de improviso (Mt 24,43-44): “Eis que venho como um ladrão” (Ap 16,15). Geralmente as manifestações de Deus se dão de maneira bem simples: em situações, lugares e pessoas que nós nem sequer imaginamos. Por esse motivo Jesus nos convida a ficarmos atentos e atentas para sabermos “interpretar o tempo presente” (Lc 12,54-57), ou seja, para percebermos nos acontecimentos do momento em que estamos vivendo os apelos de Deus.

            Por essa razão um outro elemento significativo que caracteriza o Advento, enquanto estado permanente da vida cristã, é a vigilância (Lc 12,35-48). Vigiar não é ficar apavorado, com medo, com ânsia, com insônia, temendo a chegada de um carrasco. Vigiar é dispor-se a escutar o chamado divino que se manifesta no cotidiano da vida e dispor-se a realizar a tarefa que ele quer nos confiar. Os Evangelhos expressam tal convicção através de uma simbologia estupenda: “Estejam com os rins cingidos e com as lâmpadas acesas” (Lc 12,35). A vigilância é, pois, essa atitude de quem está antenado, sintonizado com a realidade para nela perceber os apelos divinos.

Note-se que não se trata de estar sintonizado diretamente com Deus, mas com a realidade na qual Deus se manifesta. Há muitos que perdem tempo querendo descobrir a voz de Deus e se esquecem de que ele está falando por meio dos sinais dos tempos, através daquilo que está acontecendo no mundo. Pelo menos é o que a Bíblia nos ensina através dos relatos de vocação. O vocacionado ou vocacionada fica querendo saber diretamente de Deus o que ele quer, mas ele sempre os convida a ver, a ouvir, a enxergar, a dar-se conta da realidade onde ele está se manifestando (Êx 3,7-10).

O tempo do Adento é, pois, uma oportunidade que temos de reavivar a nossa espera e a nossa expectativa, entendidas como dimensões permanentes da vida cristã. Porém, não sei se isso está realmente acontecendo em nossas Igrejas. E isso por duas razões. Em primeiro lugar porque os cristãos, de um modo geral, são também infectados pela onda de consumismo que antecede o Natal. Salvo raríssimas exceções, os cristãos e as cristãs se preparam para o Natal indo às compras, frequentando shoppings e gastando o que não podem. Em segundo lugar porque, depois da compra de presentes, se lembram de ir ao templo fazer algumas orações e assistir a alguma missa ou culto. Reduzem a espera e a expectativa a atos de beatice e de carolice. A reza, por si só, não conduz ao clima do Advento, entendido como espera e como expectativa da vinda de Cristo, do jeito e da forma como ele costuma se manifestar. A reza, por si só, não conduz à vigilância, ou seja, à capacidade de ler os sinais dos tempos. A reza excessiva, diferentemente do que se pensa, pode levar à incredulidade (Mt 28,17; Lc 24,41).

O que se espera é que as lideranças cristãs saibam orientar bem as pessoas neste período do Advento. Que não fiquem iludindo os fiéis e reduzindo a preparação para o Natal a um amontoado de rezas, de novenas, de velas coloridas e de incenso. Que sejam capazes de ajuda-las a perceberem os sinais dos tempos e a serem, de fato, vigilantes. Capazes de estimulá-las ao compromisso e à ação. No Advento se deveria cantar com paixão o refrão da música de Geraldo Vandré: “Vem, vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Quem, no Advento, cruza os braços e espera acomodado as manifestações de Deus, não entendeu nada do espírito desse tempo litúrgico. “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu” (Mt 7,21). Quem reduz seu Advento a rezas, novenas, loas, missas e cultos, não compreendeu nada do que ele significa. Não está cultivando a verdadeira espera e a verdadeira expectativa cristãs.

sábado, 15 de novembro de 2014

Atualidade


Preconceito contra nordestinos:
Perda da racionalidade e da essência do cristianismo

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Nasci no Nordeste brasileiro, no município de Araci (Bahia), numa região conhecida como “Polígono da Seca”. Nasci no meio da caatinga, porque nasci na zona rural. No período entre 1961 e 1963, quando eu estava entre os cinco e sete anos de idade, a região enfrentou uma grande seca. Lembro-me bem que com apenas cinco anos de idade já acompanhava meu pai e minha mãe no enfrentamento da seca. Eles não me faziam trabalhar, mas eu, com a curiosidade própria de criança, observava tudo muito bem. Depois cresci, ganhei o mundo, fui estudar na Europa, tornei-me teólogo e rodei por todo o Brasil em encontros e assessorias. Fiz amigos por toda parte, inclusive no sul do país, onde sempre fui tratado com muito carinho, respeito e consideração. Não me lembro de ter sido maltratado alguma vez no sudeste ou no sul do país por causa de minhas origens nordestinas.

            Porém, nas eleições de 2010 e nestas últimas eleições senti-me profundamente maltratado e discriminado, pois o preconceito contra os nordestinos, espalhado pelas redes sociais, atingiu-me profundamente e deixou-me muito triste. Deixou-me triste, sobretudo, não apenas porque sou nordestino, mas porque atitudes como essas revelam a face perversa do ser humano, capaz de desatinos como esse. Fiquei triste porque a história da humanidade mostra com suficiência o quanto o ódio, a discriminação e o preconceito contra determinadas categorias de pessoas foram capazes de gerar massacres e sofrimentos para a humanidade. E, mesmo assim, não aprendemos a lição. Continuamos, burramente, a repetir o mesmo erro.

            Mas a tristeza maior é saber que, na maioria das vezes, tais atitudes partem de pessoas que se dizem ou se professam cristãs. São frequentadoras de templos, de cultos, de missas, “comedores de hóstia”, devotos da Bíblia Sagrada. Andam proclamando por toda parte que “aceitaram Jesus”, mas o crucificam diariamente ao discriminar ou cultivar preconceitos contra certas categorias de pessoas.

O Censo de 2010 revelou que 93% da população brasileira se declara adepta de uma religião. Quase 90% afirma pertencer a uma confissão cristã. O que nos autoriza a dizer que boa parte, senão a totalidade daqueles e daquelas que discriminam os nordestinos é formada de cristãos e de cristãs. Mesmo porque, de um modo geral, os que se declaram ateus ou agnósticos e as pessoas das religiões não cristãs, que vivem no Brasil, costumam ser mais tolerantes. Pelo menos esta é a minha experiência.

            Antes de mais nada é preciso dizer que todo preconceito contra determinadas pessoas ou grupos de pessoas é fruto da ignorância, ou seja, da falta de conhecimentos mais elementares. E como tenho percebido que tais atitudes partem quase sempre de pessoas que possuem formação acadêmica ou científica, isso se torna ainda mais grave e a responsabilidade dessas pessoas, diante da humanidade e diante de Deus, aumenta ainda mais. Hoje qualquer pessoa que tenha cursado o ensino fundamental e o ensino médio sabe o que dizem as diversas ciências. Somos todos, sem exceção, descendentes dos hominídeos, macacos-homens, ou homens-macacos, que habitavam a Terra a partir de quatro milhões de anos atrás. Estes, por sua vez, são descendentes dos primatas. Hoje há certo consenso, por parte dos cientistas, de que a vida humana teria surgido na África, de um único e mesmo tronco, quando, por uma obra maravilhosa do processo evolutivo, alguns descendentes dos primatas desenvolveram melhor o seu cérebro, tornando-se “homo erectus” (que anda a pé) e, um pouco depois, “homo sapiens” (capaz de desenvolver tecnologias para facilitar a vida). Esse processo levou ao que os antropólogos chamam de hominização, ou seja, o ser humano desenvolveu a capacidade de pensar, de refletir, inclusive sobre si mesmo, e de saber que é um ser pensante. Portanto, somos todos descendentes dos primatas, dos hominídeos; somos todos parentes uns dos outros. O fato de ter nascido numa determinada região do planeta não torna alguém superior a ninguém. Esse dado não elimina a sua condição de descendentes dos primatas e de parente de todos os humanos da Terra. Pode, sim, tirar a sua condição de hominização, pois quem acredita ser superior aos demais seres humanos por ter nascido em uma região da Terra já perdeu a sua capacidade de pensar, de refletir com lógica e racionalidade. Já perdeu a principal característica que o distingue dos primatas.

            Dito isso, convém salientar que toda forma de preconceito e de discriminação é uma negação explícita da fé cristã. Os textos do Segundo Testamento, fundamentados no Primeiro Testamento, são muito claros em rejeitar toda forma de preconceito contra determinadas classes de pessoas. Jesus, o fundador e o fundamento da fé cristã, combateu de forma veemente todo preconceito e toda discriminação. O Evangelho de Marcos, considerado o mais antigo dos evangelhos canônicos, apresenta Jesus, logo no início de seu ministério, como alguém que se mistura com publicanos, cobradores de impostos e prostitutas (Mc 2,13-17). Estas categorias de pessoas, dentro da cultura judaica da época, eram vítimas de preconceitos e, por isso, profundamente discriminadas e excluídas do convívio social.

Do ponto de vista geográfico e regional, a elite judaica desprezava os samaritanos, pois os considerava um povo que tinha se misturado com não-judeus, durante o período do cativeiro babilônico. E, como povo misturado, não era de “pura raça”. O preconceito era tão forte que os judeus não falavam com os samaritanos (Jo 4,9). Jesus quebra esse preconceito regional, dialogando publicamente com uma mulher samaritana (Jo 4,7-27), fazendo elogios rasgados a um samaritano (Lc 17,16-19) e apresentando um deles como modelo perfeito de discípulo (Lc 10,25-37). E quando um grupo de samaritanos, certamente impulsionados pelo preconceito do qual eram vítimas, se recusa a hospedar Jesus em um dos seus povoados, os discípulos querem se vingar. Mas Jesus não aceita tal comportamento vingativo e os repreende, entendendo perfeitamente o gesto daquelas pessoas (Lc 9,52-56).

Os exemplos podiam ser multiplicados, se quiséssemos mostrar mais exaustivamente como Jesus se posicionou contra toda forma de preconceito e de discriminação. Mas podemos parar por aqui para lembrar um outro aspecto da vida de Jesus, que não é acidental e ter um valor incalculável para a compreensão do que estamos dizendo. Trata-se do fato de que, ao encarnar-se, o Filho de Deus não escolhe nascer em Jerusalém, centro cultural, religioso e político daquele período da história judaica, mas na periferia, na Galileia. A Galileia no tempo de Jesus era discriminada, da mesma forma que o Nordeste brasileiro hoje é discriminado por certas pessoas do Sudeste e do Sul. Era tida como terra de gente atrasada, ignorante, inculta e o seu povo considerado “zé povinho” pelos mandatários de Jerusalém. A Galileia era tida pela elite de Jerusalém como a região cujo povo “ficava nas trevas” (Mt 4,16), um eufemismo para afirmar “civilizadamente” que era uma terra de gente ignorante.

E como se isso não bastasse, o Filho de Deus decide viver com sua família em Nazaré, um povoado da Galileia profundamente discriminado pelos judeus (Jo 1,46). O título de “Nazareno” (Jo 19,19), dado a Jesus pelas autoridades religiosas e políticas da sua época não visava apenas apontar a sua origem. Tinha como objetivo principal discriminá-lo e desacreditá-lo diante do povo. Esse aspecto da encarnação de Jesus era tão significativo para o cristianismo primitivo que, segundo a versão canônica mais antiga dos Evangelhos (Mc 16,7; Mt 28,7), será preciso retornar à Galileia para “ver” Jesus. Ou seja, para ser verdadeiro, o cristianismo terá que optar pelos derrotados, pelas vítimas do preconceito. Terá que se identificar com aqueles que são excluídos do convívio social por causa de sua origem e por causa de sua pertença a uma determinada classe de pessoas

Esse detalhe geralmente passa despercebido para a quase totalidade dos cristãos. Mas, como notou muito bem Renold BLANK, em seu livro Deus e sua criação (Paulus, 2013, pp. 188-253), se levarmos a sério a fé na encarnação, somos obrigados a crer que, em Jesus, Deus opta pelos derrotados e questiona os sistemas tradicionais de valores. Ser galileu, ser nazareno, não é um detalhe periférico. É elemento central da encarnação, mistério que alicerça, fundamenta, a fé cristã. Deus quis que seu Filho pertencesse a uma classe de derrotados e discriminados pelo sistema religioso e político de sua época. E se “Deus é assim como ele se comportava em Jesus Cristo, surge disso uma exigência inevitável para todas as pessoas que nele creem: elas precisam verificar se seu sistema de valores religiosos corresponde a esses parâmetros. E se não corresponde ou somente em parte, elas precisam reconsiderar o sistema, modificar seus projetos e reorientar sua organização religiosa e eclesiástica segundo a ótica daquele Deus” (BLANK, p. 224).

Podemos, então, concluir que o preconceito e a discriminação são negação explícita da fé cristã. Podemos até rezar muito, frequentar templos, sermos comedores de hóstia na Igreja Católica, ler a Bíblia etc. etc. etc. Mas se ainda discriminamos grupos e pessoas, como os nordestinos, ainda estamos num estágio pré-cristão. Ainda não aderimos à pessoa de Jesus. A fé que dizemos possuir é sacrílega, é verdadeira idolatria, pois o Deus que Jesus veio anunciar não discrimina e não alimenta preconceito contra ninguém (At 10,34-36; Mt 5,45) e não aceita falsos adoradores que praticam esse tipo de abominação. Ele é aquele Deus que “continua a se mostrar, em Jesus, como um Deus que se inclina cheio de misericórdia aos fracos, aos descartados e aos pisoteados” (BLANK, p. 214).

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Eclesiologia


VRC com prazo de validade vencido

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Tem circulado na internet um artigo do Pe. Alfredo Gonçalves, scalabriniano, conhecido também como Pe. Alfredinho. Tive a grata satisfação de ser colega do Pe. Alfredinho na CNBB, quando ele era assessor das Pastorais Sociais e eu assessor do Setor Vocações e Ministérios. Nutro por ele uma grande consideração. O referido artigo, com o título “Vocações com prazo de validade” questiona a juventude e o modo de agir dos jovens de hoje que chegam à Vida Religiosa Consagrada (VRC). Mesmo conhecendo o autor do artigo e acreditando na sua “boa intenção”, não posso deixar de discordar de alguns aspectos do seu texto.

            Depois de ler o artigo do Pe. Alfredinho fiquei com a sensação de que ele culpabiliza os jovens de hoje e a sociedade “pela arte do disfarce, da dissimulação e do engano”. Eles são culpados por cultivarem “motivações oblíquas e obtusas para pavimentar o caminho que leva à VRC”. Desenvolvem uma “capacidade inegável de camaleão”. Eles “abraçam a vida religiosa sem qualquer compromisso”, diluindo “no oceano nebuloso e fugidio da modernidade” instituições históricas portadoras de um grande patrimônio e de autênticas tradições. Essa juventude transviada volatiza ou liquidifica os valores sólidos e solidamente enraizados em compromissos duradouros, transformando experiência em experimento. Por trás dessa juventude “líquida” estaria a sociedade contemporânea que, controlada pelo “mercado de consumo”, dita as suas leis, especialmente nesses tempos de avanço da informática que, embora útil, não deixa de, através de suas “mensagens eletrônico-virtuais”, destruir amizades, amores e até noivados.

         Tudo isso seria suportável se não faltasse alguma coisa essencial. Em seu artigo o Pe. Alfredinho omite por completo qualquer referência à responsabilidade das instituições eclesiásticas, como é o caso da VRC. Se existem “vocações com prazo de validade” é porque existem também instituições eclesiástica com “prazo de validade vencido”. O atual estilo ou formato de VRC está superado há muito tempo. O próprio Concílio Vaticano II, através do parágrafo 2 do Decreto Perfectae Caritatis, já reconhecia esse fato e pedia às congregações religiosas que realizassem uma profunda mudança, voltando às origens, ou seja ao Evangelho. Mas, nesses cinquenta anos que nos separam do Vaticano II, não houve uma revolução no estilo da VRC. Tivemos algumas tentativas, como foi o caso da inserção aqui na América Latina. Mas, no seu conjunto, a VRC, no seu modus vivendi (modo de ser) e no seu modus faciendi (modo de agir), continua esclerosada, superada, ultrapassada. Ela ainda se pauta por um estilo tipicamente medieval e, pior ainda, da Contrarreforma.

         Já na primeira metade dos anos 1970 o jesuíta Raimundo Hostie publicou o resultado de uma pesquisa, na qual salientava muito bem essa questão. Na metade dos anos 1990 Felicísimo Martinez Díez, por meio do seu livro Vida Religiosa: carisma e missão (Paulus) evidenciava o completo falimento do atual modelo de VRC e chegava à conclusão de que, para algumas congregações, só restava a morte como futuro. Trazendo dados interessantes Hostie e Díez mostravam que 75% das ordens e congregações fundadas já morreram, já foram extintas. E dizem, sem pudor, que a “causa mortis” destes institutos teria sido a “esclerose múltipla institucional”, causada pelo distanciamento das origens e pela absorção de um estilo de vida distante da radicalidade inicial.

         As pesquisas e os estudos realizados por Rulla, Manenti, Cencini e outros pesquisadores, especialmente da Faculdade de Psicologia da Universidade Gregoriana de Roma, dão conta de que, na dinâmica da psicologia da vocação, os semelhantes se atraem. Logo, se chegam até às congregações e seminários “vocações com prazo de validade” é porque foram atraídas por instituições semelhantes. Os pesquisadores mencionados chamam a atenção para a importância da propaganda vocacional das instituições eclesiásticas que atrai somente aquelas pessoas que se identificam com elas. Portanto, a responsabilidade ética e moral das instituições eclesiásticas pelos casos das “vocações com prazo de validade” é indiscutível. São elas que, com seu estilo, atraem este tipo de jovem vocacionado.

         Além do mais é preciso distinguir claramente a vocação das formas concretas históricas que ela assume no decorrer do tempo. É preciso dizer com toda a ênfase que só existe uma única vocação: o chamamento divino para ser pessoa humana (Gn 1,27-31) e para seguir Jesus Cristo (Mc 1,16-20). O Vaticano II, na Lumen Gentium (cap. V), chamou isso de vocação universal à santidade. O que vem depois é consequência disso. Assim sendo é perfeitamente possível, do ponto de vista bíblico e teológico, que alguém, para viver plenamente a sua vocação humana e cristã, possa mudar a sua forma concreta, histórica, no decorrer dos anos (1Cor 7,17-35). O problema é que a Igreja, a partir do IV século, vai absolutizando a vocação específica do padre, do frade e da freira, como sendo as únicas e verdadeiras vocações. Por isso não se aceita a possibilidade de que uma pessoa deixe a vida religiosa ou o exercício do ministério. Isso é visto como traição. Confunde-se a vocação humana e cristã com suas formas momentâneas. Porém, muitas vezes, as pessoas, para não traírem a vocação fundamental, precisam se distanciar de determinadas formas específicas esclerosadas, arcaicas e ultrapassadas.

         Outro aspecto a considerar é de ordem teológica e tem a ver com a fé. Deus não deixou de chamar pessoas para que vivam intensamente a sua humanidade e para seguir Jesus Cristo. E é preciso afirmar claramente que Deus não chama desmiolados, mas pessoas sérias. Às vezes existem momento de crise (1Sm 3,1), mas a responsabilidade não é de Deus, mas da mediação humana. Aqueles que são encarregados de comunicar o chamamento divino se corrompem e impedem que Deus chame através deles (1Sm 2,12-36).

         Cabe, porém, esclarecer que essas vocações sérias chamadas por Deus não obedecem padrões e critérios convencionais estabelecidos pela instituição eclesiástica (1Sm 16,6-7). Deus é livre de chamar quem ele quer. Por isso, muitas vocações são rejeitadas pelas instituições eclesiásticas porque não se encaixam nas “formas” por elas estabelecidas. Terminam permanecendo apenas aquelas subservientes, bajuladoras, carreiristas, oportunistas etc. Mas é preciso também evidenciar que Deus não chama pessoas “boazinhas”. Ele tem preferência por aquelas que fogem completamente dos padrões convencionais das instituições eclesiásticas (1Cor 1,26-30). Basta dar uma olhada no grupo que Jesus escolheu para se perceber essa verdade. Todos, sem exceção, tinham defeitos (Mc 8,14-21). No grupo havia carreiristas (Mc 10,35-37), covardes (Mc 14,66-72) e até ladrão (Jo 12,6). Portanto, as instituições eclesiásticas precisam admitir o princípio de que Deus continua chamando e chamando pessoas assim, com a ideia de que vocação tem “prazo de validade”. Cabe-lhes a responsabilidade de educá-las para a radicalidade evangélica. Desta forma, o fracasso não está nos jovens e na sociedade, mas no modelo eclesiástico incapaz de transformar os jovens “camaleônicos” em discípulos e discípulas corajosos de Jesus (Mc 16,20; Lc 24,33-35). E a sua incapacidade advém do seu estilo pouco evangélico e mais identificado com os “tiranos deste mundo” (Mc 10,42-43).

         Lamentavelmente o Pe. Alfredinho usa, no seu artigo, uma pedagogia que a Igreja vem usando há séculos, mas que nunca funcionou, a não ser para afastar dela as pessoas. Trata-se de considerar a instituição eclesiástica como infalível e, por causa disso, atribuir todos os males à humanidade e ao mundo. Por esse motivo, na Idade Média, a hierarquia da Igreja Católica Romana não quis dialogar com as pessoas que pensavam diferente, preferindo queimá-las ou enforca-las através da “santa Inquisição”. Se tivesse dialogado a doutrina católica, hoje, seria bem diferente e ela não carregaria na sua história um dos seus piores estigmas. Na Idade Moderna não quis dialogar com o iluminismo e com a ciência, preferindo fechar-se em concepções arcaicas e ultrapassadas que ainda hoje fazem rir. Por fim, na idade contemporânea, se opôs decididamente contra as grandes conquistas da humanidade como a autonomia, a liberdade, a democracia, o socialismo e a liberdade de consciência. E no apagar das luzes do século XIX, o papa Pio IX ainda condenava e excomungava quem aderisse a essas ideias. O resultado foi que estas coisas foram conquistadas apesar da Igreja e, quase sempre, contra ela.

         Infelizmente, como afirmou recentemente um teólogo, a instituição eclesiástica continua com a sua “incapacidade de sequer perceber que estruturas precisam ser modificadas. Os respectivos portadores de decisões fecham-se, numa verdadeira cegueira diante do sistema, contra a intelecção necessária” (BLANK, Renold. Deus e sua criação, Paulus, 2013, p. 104). Mas os cristãos e as cristãs são chamados por Deus “para modificar também todas aquelas estruturas que não correspondem a sua vontade e a suas ideias” (ibidem). E não só. Terão que abolir todas as condições que levaram ao surgimento dessas estruturas que precisam ser mudadas.

Seria, pois, desejável que o Pe. Alfredinho revisse o seu artigo e não culpabilizasse apenas os jovens e a sociedade, mas deixasse bem clara a responsabilidade das instituições eclesiásticas pelo fenômeno das vocações “com prazo de validade”. É preciso, com muita humildade, reconhecer que tais instituições, inclusive a VRC, estão viciadas, dominadas por estruturas de pecado que corrompem até mesmo as pessoas mais inocentes e bem intencionadas. Os recentes acontecimentos no interior da Igreja não nos deixam mentir.