Dimensão missionária da Igreja
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e
professor universitário
No Brasil, há algumas décadas, a
Igreja Católica Romana considera outubro como mês missionário. O objetivo, certamente, é levar os católicos a
tomarem cada vez mais consciência de uma das dimensões fundamentais do
discipulado ou seguimento de Jesus. A Igreja é, por natureza, toda ela
missionária, nos lembrava há 50 anos atrás o Concílio Vaticano II. A dimensão
missionária, explica o documento conciliar Ad
Gentes, brota da missão do Filho e do Espírito Santo. O Pai manda, na
plenitude do tempo, o seu Filho que nasce de mulher (Gl 4,4) e envia, através
de Jesus (Jo 15,26), o Espírito (Jo 14,16). O Filho, por sua vez, envia os
discípulos como missionários pelo mundo inteiro (Mc 16,15), os quais são
revestidos da força do Espírito (At 1,8). Portanto, uma comunidade cristã que
não é missionária, não é Igreja (ekklesía),
ou seja, não é comunidade de fé convocada e reunida pela Santíssima Trindade.
Pode ser um clube, uma associação de pessoas religiosas, um grupo de amigos,
mas não Igreja, no sentido bíblico e teológico desta palavra.
Dizer que a Igreja é, por natureza,
missionária implica saber e entender qual é a sua missão. A missionariedade decorre da missão. Qual
é, então, a missão da Igreja? A mais antiga definição da missão da comunidade
cristã, ou seja, da Igreja encontra-se no evangelho de Marcos: “Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa
Nova para toda a humanidade” (Mc 16, 15).
Três aspectos importantes da missão aparecem neste
mandato que Marcos atribui a Jesus. Em primeiro lugar, o núcleo central da missão. Trata-se de “anunciar a Boa Notícia”.
Mas, qual “Boa Notícia”? Lucas e Mateus nos dão a resposta. Segundo Lucas, a
“Boa Notícia” é dirigida aos pobres e
consiste em “proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da
vista”. O objetivo da missão da Igreja é “libertar os oprimidos” e “proclamar
um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19). Mateus, por sua vez, afirma que, para
Jesus, o sinal da sua messianidade
está exatamente nisso: “aos pobres é anunciada a Boa Notícia” (Mt 11,5). Fica,
pois, evidente que a essência da missão da Igreja é, pela palavra e
pela ação, contribuir para a libertação dos pobres e dos oprimidos. O restante
deve ser apenas consequência disso.
Portanto, entre a opção preferencial pelos pobres e a missão da Igreja há um
vínculo indissolúvel. Separar as duas
coisas é o mesmo que diluir o essencial da missão. Não por acaso o papa
Francisco voltou a nos relembrar recentemente este aspecto (EG, 197), que
estava sendo sepultado por uma Igreja Católica, que tinha decididamente se
voltado para um estilo direitista e ultraconservador durante o pontificado de
João Paulo II e Bento XVI. Há razão, pois, a CNBB quando afirma que “o caminho
da redenção está assinalado pelos pobres” (Estudos 107, nº 153).
O segundo aspecto importante da missão, assinalado pelo texto
de Marcos, é o fato de que a Igreja precisa pensar a missão como ação destinada
ao mundo inteiro. Isso significa que
o anúncio da Boa Notícia aos pobres deve chegar a todos os cantos da terra. A
missão da Igreja deve ser tão marcante e impactante, a ponto de ressoar em
todos os lugares de nosso planeta. Este aspecto supõe uma Igreja ousada,
corajosa, que não fique trancada dentro dos templos (Jo 20,19), com medo de ser
contaminada ou perseguida. Supõe uma Igreja profética, que não aceita fazer
pactos com os ricos e poderosos desse mundo, mas que se declara e assume com
coragem a causa dos pobres, denunciando os ricos (Lc 6,24-25) e os exploradores
dos pobres (Tg 5,1-6). Uma Igreja “frouxa”, medrosa, comprometida com os ricos
e poderosos não é e nunca será missionária.
O terceiro aspecto da missão evidenciado por Marcos tem a ver
com os destinatários: o anúncio da
Boa Notícia deve ser dirigido a toda a humanidade. Todos os homens e todas as
mulheres têm o direito de receber da
Igreja este anúncio. E não é preciso que se “convertam” ao catolicismo. Em suas
próprias culturas, em suas próprias religiosidades, em suas situações
concretas, os povos e as pessoas têm o direito de receber da Igreja o
testemunho de uma opção firme e decida em favor dos pobres. Este é um tipo de
anúncio que todo mundo entenderá, independentemente de sua língua e de sua
cultura. E é isso que falta à Igreja, especialmente à Igreja Católica. Ela não
consegue sinalizar para a humanidade que está decididamente do lado dos pobres, combatendo toda forma de opressão
e promovendo a libertação integral das pessoas e dos povos. Daí o fracasso da
sua missão nas mais diversas partes do mundo, inclusive nos países do
hemisfério sul, uma vez que falar aqui de cristianismo, de Igrejas, é o mesmo
que falar de colonialismo. E as
pessoas mais inteligentes, em número cada vez maior, que habitam o sul do
planeta, sabem muito bem o que significou para seus países, para suas culturas
e para seus povos o colonialismo implantado pelos países “cristãos”.
E não estou dizendo isso por acaso. Todos sabemos que a
partir do momento em que a Igreja, contrariando a vontade de Jesus, começou a
imitar e a copiar o estilo dos poderosos deste mundo (Mc 10,42-44), ela passou
a entender a missão como “plantatio ecclesiae”, ou seja, como mero transplante
do estilo europeu de Igreja para as demais regiões do mundo. Fazer missão,
missionar, era o mesmo que impor às demais culturas a religião católica. A
missão consistia em destruir e eliminar por completo as culturas, tidas como
idolátricas, selvagens e pagãs, impondo a ferro e fogo o catolicismo. Foi o que
aconteceu, por exemplo, na América Latina, ainda hoje marcada pela violência e
pelos massacres praticados contra os indígenas pelos conquistadores espanhóis e
portugueses, em nome da fé católica.
Lamentavelmente a maioria dos bispos e dos padres ainda
entende a missionariedade da Igreja nesta perspectiva colonialista. Acreditam
piamente que fazer missão é o mesmo que fazer proselitismo, ou seja, converter o maior número possível de pessoas
para o catolicismo. A maioria deles não tem presente a perspectiva bíblica da
missão, sobretudo no que diz respeito à questão do seu significado como anúncio
de uma Boa Notícia para os pobres e oprimidos. Várias vezes, em reuniões de
bispos, pude escutar alguns deles questionando o modo de evangelizar de
instituições como o CIMI e a CPT, que optam pelo diálogo com as culturas e não
pelo proselitismo barato. Esses bispos são do parecer que se deve chegar nesses
espaços fazendo proselitismo, ou seja, convertendo de qualquer jeito ao
catolicismo as pessoas que ali estão. Minha posição foi sempre a de que esse
modo de “evangelizar” é de grupos fundamentalistas cristãos e não de
verdadeiros discípulos de Jesus.
Talvez ainda precisamos aprender com os grandes santos em que
consiste realmente a missão. Lembro-me, neste instante, de Charles de Foucauld,
cuja vida foi um mergulho profundo no escondimento e no silêncio. Mas duvido
que alguém tenha sido mais missionário do que ele. O irmão Carlos de Jesus
entendeu, como santa Teresinha do Menino Jesus, que a missão é essencialmente amar o próximo e não fazer proselitismo.
Por isso não tinha medo de dizer que ele estava ali no deserto não para
converter os tuaregues, mas para
compreendê-los. Tinha a convicção, dizia em 1905, que falar de Jesus para
eles significaria afugentá-los. Não que o nome de Jesus, por si só, assustasse
os mulçumanos, mas a associação que eles faziam de Jesus com os bárbaros e
violentos europeus cristãos. De fato, naquele mesmo período a França dominava a
região e praticava as maiores barbaridades contra os nativos, tratando-os como
escravos e como objetos quaisquer. Para o irmão Carlos, numa situação como
essa, bastava que os tuaregues sentissem que ele era apenas seu amigo e seu
serviçal. Isso já era missão, já era evangelização.
“O amor é o meio mais poderoso de atrair o amor, porque amar
é o meio mais poderoso de fazer-se amar” (Charles de Foucauld). Assim, continua
o irmão Carlos de Jesus, a melhor forma de realizar a missão da Igreja é
amando, mesmo sem dizer uma palavra: “sem nunca dizer-lhes uma palavra de Deus,
nem de religião, sendo paciente como Deus é paciente, sendo bom como Deus é
bom, amando, sendo um irmão cheio de ternura, e rezando”.
Faço votos de que o mês missionário nos ajude a entender tudo
isso. Faça-nos perceber que a missão não é algo a mais a se fazer, uma pastoral
a mais na Igreja, mas uma dimensão
que deve perpassar toda a vida da Igreja. Faça-nos entender que missionar não é
fazer prosélitos, mas anunciar a Boa Notícia da libertação dos pobres e
oprimidos a todos os homens e mulheres da Terra. E acima de tudo nos faça
entender que “a Igreja não é o centro. Cristo é o centro!” (Estudos da CNBB
107, nº 148). E por essa razão é indispensável “passar de atitudes fechadas à
formação de uma nova cultura, que constrói cidadania no diálogo e que não tem
medo de acolher o que o outro, o diferente, tem a oferecer” (Ibid., nº 157).
A missão, quando entendida desta forma, faz a Igreja deixar
de se um amontoado de delirantes alienados, carolas e de beatos para ser uma
Igreja laical, isto é, uma Igreja
comprometida em testemunhar Jesus Cristo “em todas as circunstâncias, no
interior da comunidade humana, tão marcada por dinâmicas excludentes,
indiferenças, buscas desenfreadas de consumo e satisfação” (Ibid., nº 163). Quando se entende a
missão na perspectiva bíblica a Igreja deixa de ser “um clube de eleitos” (Ibid., nº 146), uma “alfândega
controladora da graça de Deus” (EG, nº 47), para ser “uma Igreja pobre, para os
pobres, com os pobres e os que se encontram nas periferias existenciais”
(Estudos da CNBB 107, nº 151).
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