terça-feira, 30 de setembro de 2014

Experiência


Como a erva do campo

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Minhas amigas e meus amigos tomaram conhecimento do problema de saúde que se abateu sobre mim, pegando-me de surpresa e obrigando a submeter-me a um longo tratamento que durará, no mínimo, uns seis meses. Tive a graça de acolher a surpresa com naturalidade, sem revoltas, sem desespero e sem ânsia. Os vinte e oito dias passados inicialmente na Ala de Hematologia do Hospital de Base do Distrito Federal me ofereceram a oportunidade única de refletir sobre a vida humana. Dessa reflexão nasceu o presente artigo que pretende ser apenas a introdução a um texto que, com minha esposa Ana Márcia, pretendo publicar depois que tudo passar. O texto já tem até título: Como a erva do campo. Reflexões sobre a fragilidade e a brevidade da vida humana.

            De um modo geral todas as culturas religiosas afirmam que é vontade dos deuses que os seres humanos tenha vida plena e vida longa. Ter uma vida pela metade e uma vida curta não faz parte do projeto inicial das divindades criadoras. No caso da tradição judaica e da tradição cristã isso é muito explícito. Já nas primeiras páginas do Gênesis encontramos o “jardim em Éden, no Oriente”, onde Deus coloca as pessoas humanas que ele acabara de “modelar” (Gn 2,8). Este jardim, com um rio dividido em quatro braços, rico de árvores formosas de todas as espécies, com frutas “boas de comer” (Gn 2,9), é símbolo da abundância e, portanto, da vida plena querida por Deus para os seres por ele criados. Tal narrativa, na verdade, representa uma síntese de toda a tradição judaica, que a partir de experiências dolorosas, simbolizadas pelo êxodo do Egito e pela travessia do deserto, aprendeu que é desejo de Javé que as pessoas humanas tenham acesso a uma vida plena e intensa. Mais tarde, já no cristianismo, as comunidades cristãs vão lembrar o dito de Jesus que afirmou: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

            Mas para a tradição judaica e para a tradição cristã vida plena significa vida longa. Não se pode falar de vida em abundância quando as pessoas são condenadas a morrer jovens, por qualquer motivo, sem atingir uma boa longevidade. Desta forma, a vida longa, que ultrapassa os cem anos, vai sendo considerada uma bênção divina para o ser humano. Isso era tão claro que a Bíblia judaica, citada aqui na versão Pastoral (Paulus), ao falar do novo céu e da nova terra que Javé irá criar, chega a afirmar: “Aí não haverá mais crianças que vivam alguns dias apenas, nem velhos que não cheguem a completar seus dias, pois será considerado ainda jovem quem morrer com cem anos, e quem não chegar aos cem anos será tido por amaldiçoado” (Is 65,20). Num ambiente onde a média de vida era baixíssima e a mortalidade infantil altíssima estas palavras do profeta devem ter ressoado com grande impacto e gerado muita esperança.

            Porém, a tradição judaica e a tradição cristã são realistas. Sabem que vida plena e vida longa não significam possuir a imortalidade dos deuses. O ser humano faz parte da criação e, enquanto criatura, ele é finito, limitado, frágil e mortal. Como os demais seres vivos, os humanos nascem, crescem, passam pela terra e depois morrem. A ideia, muito cultivada no passado, de que se não tivesse existido aquilo que costumamos chamar de “pecado original”, os humanos seriam imortais, ou seja, não morreriam, não tem hoje o menor fundamento e a menor consistência. A morte da qual fala o Gênesis (2,17) não se refere à morte física, mas à incapacidade de, nas decisões e nos projetos existenciais, escolhermos a vida e a felicidade (Dt 30,15-20). Isso é fácil de perceber inclusive nos dias atuais: temos dificuldade de aderir a projetos de vida e, quase sempre, apoiamos ou cedemos a projetos de morte, como aqueles que, no momento, destroem o ambiente em que vivemos.

Portanto, mesmo sendo vontade do Criador que os humanos tenham vida plena e vida longa, a fragilidade e a brevidade marcam profundamente a existência humana. “Os dias do homem são como a relva, ele floresce como a flor do campo. Roça-lhe um vento, e já não existe, e ninguém mais reconhece o seu lugar” (Sl 103,15-16). E, muitas vezes, tal fragilidade e tal brevidade se tornam ainda mais dramáticas porque os seres humanos se recusam a caminhar pela lógica divina. Isso torna a vida penosa, difícil e hostil e o próprio ambiente passa a ser agressivo e desumano (Gn 3,17-19). Basta olharmos, hoje, à nossa volta para constatarmos essa realidade. Por isso mesmo a condição para uma vida plena e longa é aceitarmos a nossa condição de simples criaturas e aprendermos a conviver com tal condição, sem revoltas e sem resignações: “os dias que me destes são um palmo apenas” (Sl 39,6).

            Convém, porém, salientar que, segundo a tradição judaica e a tradição cristã, há uma maneira simples e fecunda de resgatar a plenitude da vida, suavizando e até eliminando os impactos duros e violentos da fragilidade e da brevidade da existência humana. E esta forma simples não toca à divindade, mas aos humanos. Cabe a nós realizar essa importante tarefa. Trata-se da solidariedade e do amor. Ao sermos solidários com os que sofrem e ao manifestarmos em profundidade o nosso amor, especialmente pelos mais sofridos, nós contribuímos concretamente para que o projeto original de Deus volte a acontecer no mundo. Tanto a Bíblia judaica como a Bíblia cristã estão permeadas desse convite permanente à solidariedade e ao amor. O povo hebreu foi sempre chamado a “abrir a mão” para o irmão pobre, para os indigentes, oferecendo-lhes o que eles necessitam, sem “pensamento mesquinho”, sem má vontade, sem avareza. A “mão fechada”, ou seja, a falta de solidariedade é considerada pela Bíblia hebraica um pecado grave que Javé repudia (Dt 15,7-11). Jesus segue essa tradição judaica e, diversas vezes, exorta as pessoas a serem solidárias. Ao contar a parábola do “bom samaritano” ele convida o seu interlocutor a “fazer a mesma coisa” (Lc 10,37).

            Creio que a maior graça que me foi dada nestes dias que passei no hospital foi sentir de perto a solidariedade das pessoas. Além do carinho, da ternura, do amor e do cuidado de minha amada esposa Ana Márcia, as amigas e os amigos do Distrito Federal logo se mobilizaram para nos apoiar de todas as formas possíveis. Pelo Brasil e até no exterior pessoas me davam forças através de uma palavra de ânimo e através da oração. Recebemos dezenas de telefonemas. Outros se perderam, pois não dávamos conta de responder a todos.  Como precisei de transfusão de sangue e de plaquetas, estes amigos organizaram uma rede de doadores e mais de quarenta pessoas foram até o Hemocentro de Brasília para doar sangue. Assim, não somente eu, mas outras pessoas que estavam na mesma situação puderam se beneficiar disso.

            Antes eu disse que é preciso aceitar a condição humana da fragilidade e da brevidade sem revoltas, mas isso não pode significar resignação. Desta forma, uma das maneiras de rezarmos nestas horas é protestando, reclamando de Deus que “permitiu” tal situação. Lamentavelmente uma certa religiosidade alienante das Igrejas eliminou esta forma de rezar, classificando-a de blasfêmia e obrigando as pessoas a aceitarem tudo como sendo vontade de Deus. Mas tanto na Bíblia judaica como na Bíblia cristã protestar contra Deus, reclamando do que acontece é uma das formas clássicas de oração. Os salmistas foram especialistas na oração de protesto. Eles reclamam porque Deus fica mudo e imóvel diante do mal (Sl 83,2). Conhecemos as palavras do Salmo 22 que, segundo os evangelistas, foram recitadas por Jesus no momento de sua morte na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? Apesar dos meus gritos, minha prece não te alcança! De dia eu grito, meu Deus e não me respondes. Grito de noite, e não fazes caso de mim!” (Sl 22,2-3).

Mas o principal ícone deste protesto contra Deus é Jó que, diferentemente do que se pensa, não pode e nem deve ser tido como símbolo de paciência, mas, pelo contrário, de protesto contra um Deus que faz sofrer o inocente. Diante dos amigos que insistem em lhe dizer, segundo a mentalidade da época, que o seu sofrimento era a “retribuição” por crimes ou pecados cometidos por ele, Jó protesta e não aceita resignadamente o sofrimento. Reclama de Deus que lhe “nega justiça” e lhe “enche de amargura” e declara que não aceita a acusação de estar pagando pelo que fez, pois isso seria o mesmo que dizer falsidade e pronunciar mentiras, ou seja, violar os mandamentos da Torá (Jó 27,1-4). E conclui: “Longe de mim dar razões a vocês! Vou me declarar inocente até o meu último suspiro. Vou me agarrar à minha justiça, e não vou ceder. Minha consciência não reprova nenhum dos meus dias” (Jó 27,5-6)

            Também eu tive que protestar, pois foi no campo religioso que tivemos a experiência mais negativa durante a minha estadia no Hospital de Base do Distrito Federal. De vez em quando, especialmente nos finais de semana, com a conivência de certos funcionários do Hospital, a enfermaria onde eu me encontrava era invadida por evangélicos e alguns católicos que caiam sobre nós como verdadeiros urubus em cima de uma carniça. Sem o menor respeito pelo ambiente público, pela diversidade, sem pedir a devida licença, chegavam fazendo suas pregações histéricas e moralistas à base de gritos, alaridos, ameaças, deixando entender para nós doentes que a nossa enfermidade era castigo e que só restava uma alternativa: “se converter a Jesus”.

            Certo dia apareceu uma mulher que se identificou como sendo da Pastoral da Saúde da Paróquia São Camilo de Lélis. Não se diferenciava dos evangélicos na histeria e na pregação moralista. Notei que não havia nenhum preparo para ser agente da Pastoral da Saúde e conclui que as paróquias e seus párocos precisam preparar melhor essa gente. Fiquei pensando no paradoxo: enquanto ali na enfermaria tinham pessoas precisando de solidariedade, de calor humano, de carinho, de ternura e até de coisas básicas como uma roupa, um lençol e um remédio, aquela mulher da Pastoral da Saúde fazia para nós apenas um discurso histérico, moralista e vazio. Imaginei São Camilo de Lélis decepcionado com aquela cena, ele que não saiu pelos hospitais fazendo pregações moralistas, mas pelas ruas recolhendo, tratando e, sobretudo, amando os pobres doentes. Penso que se ele estivesse naquela enfermaria teria, como Jesus no templo, enxotado a chibatadas aquela mulher que de Pastoral da Saúde nada entendia.

            “Mesmo no mais escuro da noite temos o direito de esperar alguma iluminação” (Hannah Arendt). Note-se bem o que diz Arendt: “temos o direito de esperar”. A minha estadia no hospital convenceu-me de que precisamos cuidar mais de nossos doentes, particularmente dos mais pobres, cujo sofrimento é duplicado pela condição social em que se encontram. E as Igrejas, aos invés de pregações histéricas, idiotas e vazias, precisam ser solidárias com tais pessoas. Como bem nos ensina a parábola de Lucas, o samaritano que encontrou o homem “meio morto” (Lc 10,30), na estrada que desce de Jerusalém para Jericó, não lhe fez discursos vazios e moralistas, para depois seguir adiante “pelo outro lado” (Lc 10, 31). Ele aproximou-se do ferido, fez curativos e o levou para um lugar onde ele poderia se recuperar totalmente, pagando todas as despesas. Ou seja, foi solidário. Precisamos apenas fazer isso, pois o resto é hipocrisia, religião fingida e idolátrica, histérica e desumana.

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