quarta-feira, 28 de maio de 2014

Momento eclesial


Em busca da unidade perdida

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Tentei acompanhar de perto a visita do papa Francisco aos “lugares santos” da Palestina e de Israel para comemorar os cinquenta anos da histórica visita de Paulo VI àquelas terras, no ano de 1964, em pleno período da realização do Concílio Vaticano II. Aquelas terras possuem um valor afetivo muito grande para boa parte da humanidade, uma vez que são o berço do cristianismo, o espaço da atuação de Jesus de Nazaré, de seus primeiros discípulos e das primeiras comunidades cristãs.

Mesmo que um cristão nunca tenha ido até lá, aquela região permanece para ele um referencial simbólico de grande monta. Logo, o que ali acontece se reveste de um caráter profundamente afetivo e termina mexendo com todo o inconsciente coletivo cristão. Mas, antes mesmo do cristianismo, aquelas terras são a razão de ser do povo hebreu, povo sofrido e maltratado até hoje, em cujo seio nasce a experiência do seguimento de Jesus, do qual o cristianismo herda um patrimônio espiritual incalculável. Sem o povo judeu não haveria cristianismo. Além disso, aquela região tem ainda um significado muito grande para o povo islâmico e, de modo particular, para o povo palestino, obrigado até hoje a viver na incerteza, na insegurança, na dor e no sofrimento, sem ter direito a um reconhecimento pleno e definitivo de sua pátria. A convivência pacífica dessas três grandes religiões e o reconhecimento real de uma pátria para o povo palestino é de fundamental importância para o futuro da paz mundial. Assim sendo, urge encontrar um caminho para se chegar a essa tão sonhada paz.

Acompanhei de modo particular o encontro do papa Francisco, bispo da Igreja de Roma, líder mundial dos católicos, com o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, líder da grande e valiosíssima Igreja Ortodoxa, portadora de uma grande riqueza espiritual para todo o cristianismo. Fiz questão de seguir ao vivo pela televisão este momento histórico, pois não puder fazer isso a cinquenta anos atrás, quando Paulo VI e Atenágoras se encontraram. Quis seguir este momento por estar convencido de que a unidade do cristianismo no futuro passará por aquilo que acontecer entre essas duas grandes Igrejas.

Confesso que esperava gestos mais ousados de ambas as partes, após cinquenta anos do primeiro grande encontro, no qual os dois líderes de então retiraram a mútua excomunhão que vigorava entre as duas Igrejas, desde a triste ruptura no século XI. Senti muito formalismo e pouca espontaneidade no encontro. Os estudiosos dizem que a fisionomia das pessoas costuma revelar muita coisa. Fiz questão de observar atentamente este detalhe: os rostos dos que estavam presentes ao encontro. Não havia alegria, nem mesmo nos dois principais protagonistas; aquela alegria que devia caracterizar o reencontro de irmãos, depois de um longo período sem se ver. O que se via eram expressões de uma profunda tensão. Os dois líderes pareciam estar menos tensos, mas a platéia ao seu redor manifestava visivelmente sinais de muita tensão. Aliás, em alguns rostos era bem visível a raiva, o ódio, o fechamento. Fiz um esforço, mas não consegui em nenhum momento enxergar pelo menos o esboço de um sorriso na face dos outros padres e bispos que rodeavam o papa e o patriarca. Isso, para mim, diz muita coisa.

Sabe-se que o ambiente onde se deu o encontro entre Francisco e Bartolomeu, tido como o sepulcro de Jesus e o local de onde partiu o anúncio da ressurreição, é ainda hoje palco de verdadeiras disputas entre as Igrejas cristãs. Têm-se conhecimento inclusive de cenas recentes de violência física entre membros das diferentes Igrejas neste local, que deveria ser um ponto de comunhão, de união e de convivência amorosa. Há uma verdadeira luta pelo controle dos espaços físicos e isso só nos pode causar dor e tristeza.

Ora, isso não pode continuar acontecendo. A unidade dos cristãos é indispensável para o futuro da humanidade. Não podemos continuar insistindo na paz mundial, se os seguidores daquele que foi considerado “o Senhor da paz” (2Ts 3,16) continuam se digladiando, a começar do local em que, segundo a tradição, teria sido colocado o corpo do Mestre, após a sua crucifixão, e de onde ele teria saído vitorioso sobre a morte. Todos os apelos das Igrejas pela paz no mundo se tornam insignificantes se a humanidade sabe que os cristãos continuam divididos, disputando entre si inclusive a posse pelos “lugares santos”. Os discípulos e as discípulas de Jesus têm o grave dever de buscar a unidade, se não quiserem continuar sendo acusados de serem os responsáveis pelas divisões existentes hoje no mundo. Historicamente o cristianismo é o grande responsável por grandes tragédias mundiais, como a primeira e a segunda guerra mundial. Os países envolvidos nestas tragédias são herdeiros da cultura cristã, incapaz de fomentar, ainda hoje, a harmonia e a paz entre os povos.

No que diz respeito à busca da unidade entre as Igrejas cristãs históricas há que se voltar ao modelo anterior às grandes rupturas entre a Igreja de Roma e a Igreja do Oriente, no século XI, e entre a Igreja Romana e os herdeiros de Lutero e Calvino no século XVI. E o que existia antes? Inicialmente cada Igreja local tinha a sua autonomia, como núcleo de discípulos e discípulas de Jesus. Estas Igrejas, na medida em que iam se constituindo, escolhiam alguém para presidi-las e, consequentemente, para presidir a ceia do Senhor ou Eucaristia. Este presidente tinha nomes diferentes, conforme a cultura do local em que se encontrava a Igreja. Podiam ser chamados de bispos, presbíteros e diáconos. Quando, por acaso, surgia entre elas alguma dificuldade isso era resolvido através de encontros, de reuniões, de sínodos e, mais tarde, de concílios. Tal costume foi introduzido ainda na época dos apóstolos, como nos atestam os escritos neotestamentários (At 15,13-35).

Algum tempo depois, quando as Igrejas adotam o sistema piramidal vigente no Império, os bispos passam a deter o poder de consagrar os novos bispos, os presbíteros e os diáconos. Aos poucos as Igrejas locais vão se constituindo ao redor dos bispos, os quais, sempre segundo o esquema imperial, passam a ter também funções de administração de um grupo de Igrejas locais de uma determinada região. Com o passar do tempo, as Igrejas vão se aglutinando em torno de três grandes Igrejas locais: Roma, Alexandria e Antioquia. Mais tarde, especialmente durante o concílio de Éfeso e de Calcedônia, reconheceu-se o direito de algumas Igrejas locais se reunirem em torno da Igreja de Jerusalém, tido como a primeira Igreja. Em 381 se reconhece a posição da Igreja de Constantinopla, capital do império oriental.

Assim sendo, as Igrejas locais, todas com sua autonomia, vão se congregando em torno de cinco grandes Igrejas que se situavam em pontos estratégicos do Império romano: Roma, Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Constantinopla. E com isso foi se criando a tradição de que os cinco bispos destas Igrejas formavam uma espécie de pentarquia. As cinco Igrejas passam a ser consideradas patriarcados e os cinco bispos, chamados patriarcas, tidos como sucessores dos apóstolos e pastores supremos, são vistos como escolhidos pelo Espírito Santo para guiar a Igreja em posição de igualdade. Isso se baseava numa tradição segundo a qual estas cinco Igrejas eram de origem apostólica, isto é, tinham sido fundadas por apóstolos de Jesus.

Um pouco antes da formação dos patriarcados, provavelmente ainda no final do primeiro século da era cristã, se introduziu o costume de se apelar para a Igreja de Roma, quando surgia algum tipo de problema entre as Igrejas locais. Isto porque não era mais possível reunir todos os bispos que presidiam as Igrejas, uma vez que o número de Igrejas locais tinha aumentado e a realização de um concílio se tornava cada vez mais difícil e oneroso. Muita coisa era resolvida através de sínodos ou concílios regionais ou provinciais. Mas quando não se conseguia um consenso, apelava-se para a Igreja de Roma, cujo bispo era convidado a dar a palavra final sobre o assunto. E o que o bispo de Roma dizia era tido por todas as Igrejas como a palavra definitiva sobre a questão. Disso surgiu a expressão latina: Roma locuta, causa finita est, ou seja, “Roma falou, a causa está encerrada.

Este costume de apelar para Roma surgiu a partir de uma tradição, segundo a qual os apóstolos Pedro e Paulo teriam sido martirizados naquela cidade. E por serem considerados os apóstolos mais representativos do anúncio do Evangelho de Jesus ao mundo (Gl 2,7), a Igreja de Roma passa a ser vista como aquela que tem a primazia sobre as demais Igrejas, ou seja, aquela que pode dar uma palavra final sobre determinadas questões. Porém, inicialmente esta primazia não significava um primado e nem o bispo de Roma era considerado sucessor de Pedro. Não se atribuía ao bispo de Roma as prerrogativas que lhe serão atribuídas mais tarde, inclusive com a interpretação literal de textos bíblicos, como aquele de Mateus (16,17-19).

Uma interpretação desse tipo vai aparecer pela primeira vez no século V, com o papa Bonifácio I (418-422); se radicaliza com o papa Gregório VII. Este papa, reagindo à intromissão de imperadores e príncipes na Igreja, empreende uma reforma que culmina na absolutização do poder papal. Gregório VII (1073-1085) entendia que o poder do papa, tornado automaticamente santo a partir do momento em que era eleito (daí o título de “santidade” ou de “santo padre” atribuído ao papa), estava acima de todos e acima de tudo. Somente o papa recebeu o “poder das chaves”, ou seja, o poder de “ligar e desligar” (Mt 16,19). Por essa razão todas as pessoas da Terra devem se submeter ao seu poder. Tal interpretação chega ao seu auge no final do século XIX, quando o primeiro Concílio realizado no Vaticano, por forte pressão do papa Pio IX, decreta a infalibilidade papal.

Pode-se concluir, então, que a primazia da Igreja de Roma, que vigorou durante o primeiro milênio, não incluía uma centralização de poder absoluto, a ponto de fazer do bispo de Roma um super bispo e da Cúria Romana uma monarquia absoluta, com poderes absolutos, a ponto de intervir autoritariamente e indevidamente sobre a vida das Igrejas locais. A primazia era da caridade, ou seja, para ajudar as Igrejas locais a viverem em paz e concórdia. Jamais foi pensada em termos absolutos, autoritários e de dominação, como lamentavelmente aconteceu no segundo milênio, sendo inclusive uma das causas das muitas divisões na Igreja. Por essa razão, para se chegar à unidade desejada, é indispensável que a Igreja de Roma volte a ser o que era no início, renunciando a todo tipo de autoritarismo e de mando sobre as demais Igrejas. Que volte a ser serviço de caridade para a unidade e não exercício de poder monárquico absoluto sobre todo o cristianismo. É indispensável também que as demais Igrejas, inclusive aquelas nascidas a partir da Reforma, acolham esta função da primazia da Igreja local de Roma. Sem esse esforço mútuo, a unidade entre os cristãos não virá e a mensagem do Evangelho será cada vez mais enfraquecida pelo contra-testemunho da divisão.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Conjuntura eclesial


A dimensão conflitiva do seguimento de Jesus

 José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Alguns sites de notícia vêm mostrando com mais frequência o fato de que, cada vez mais, grupos católicos ultraconservadores estão entrando em “rota de colisão” com o papa Francisco e, mais especificamente, com as ideias e as ações do pontífice. Nota-se, não tanto nesses sites, mas em alguns católicos, certa perplexidade, como se conflitos no cristianismo fossem coisas negativas ou novidades. Algumas pessoas ainda vivem mergulhadas na ingenuidade de certo irenismo, ou seja, de que se deve buscar a unidade a qualquer custo. Alguns ainda acreditam que a unidade deve estar acima de tudo.

            Pensar assim, além de ser ilusão, é falso. Jamais podemos esquecer que, como cristãos, somos seguidores de um “bandido”, crucificado porque se recusou a negociar com o poder religioso de sua época e de seu povo e com o poder romano dominador. Recusou uma falsa unidade. O próprio Jesus, segundo as quatro versões dos Evangelhos, não enganou ninguém e não prometeu tranquilidade, sombra e água fresca para seus seguidores. Pelo contrário, advertiu severamente que o seu seguimento era muito perigoso e que a opção por ele e pelo Reino provocaria divisões muito sérias: “Vocês pensam que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu lhes digo, vim trazer divisão” (Lc 12,51). Uma divisão que chegaria a arrebentar por completo o núcleo mais duro da sociedade da sua época e de sua cultura: a família. A opção por ele provocaria, sem dúvida alguma, rupturas profundas entre pai e filho, mãe e filha, sogra e nora etc. (Lc 12,53). Uma excelente metáfora para deixar bem claro o que significaria para as pessoas a decisão de colocar-se no seu seguimento.

            O conflito provocado pelo seguimento de Jesus seria tão violento, a ponto dele mesmo advertir os discípulos sobre a real possibilidade de perder a vida (Mc 8,34-37). Alguns estudiosos da Bíblia afirmam que esse “perder a vida” significava concreta e claramente a possibilidade de ser assassinado pelo sistema religioso e político, morrendo de forma ignominiosa, o que era considerado, dentro da cultura religiosa da época, uma verdadeira maldição divina (Gl 3,13). E ao que tudo indica isso deixou os discípulos apavorados, a ponto de Pedro tentar dissuadir Jesus (Mc 8,32-33), propondo retornar ao modelo que foi proposto ao Mestre no início de seu ministério: o caminho da fama e do compromisso sem compromisso, o querer agradar as massas (Mc 1,37). Coisa que Jesus rechaça peremptoriamente (Mc 1,38-39; 8,33).

            Porém, este pressuposto não dá ao cristianismo o direito de ser beligerante, de provocar conflitos ou até massacres, como lamentavelmente aconteceu no período das Cruzadas e da Inquisição. Os discípulos e as discípulas de Jesus não provocam conflitos e guerras. Eles sofrem perseguições e podem ser martirizados por causa de suas opções concretas. O que o Mestre pede deles e delas é que não fujam do conflito, tendo que renunciar à profecia ou fazer pactos ambíguos, com a finalidade de salvar a própria pele. Por isso os textos neotestamentários apresentam dois motivos que podem levar os seguidores e as seguidoras de Jesus a se encontrarem, de repente, no meio de conflitos. Esses motivos se tornam também critérios decisivos para não abandonar o conflito, pois abandoná-lo seria o mesmo que trair a causa do Mestre.

            O primeiro motivo é a defesa do povo, colocando-se contra a intransigência da religião que oprime, massacra, exige, não usa de misericórdia, pune, escraviza e excomunga. Como Jesus, os discípulos e as discípulas precisam, sem meios-termos, denunciar a arrogância do sistema religioso que, com a sua prepotência, substitui os mandamentos divinos por meros preceitos humanos (Mc 7,1-23). Ora, tal atitude põe os seguidores e as seguidoras de Jesus em confronto direto com a religião oficial, representada antigamente pelos escribas e fariseus, e hoje pela ala ultraconservadora das Igrejas. Nessa defesa do povo está incluída também uma posição de denúncia contra os sistemas políticos opressores que exploram o ser humano, transformando-o em mercadoria, em coisas, em objetos a serem descartados (Tg 5,1-6). A reação do sistema político é violenta e o conflito é certo. Aliás, o sistema religioso e o sistema político costumam se unir para defender seus interesses (At 13,50). Por trás de um discurso religioso conservador está sempre a defesa dos interesses econômicos das elites e poderosos, e todo discurso político de direita costuma se amparar sempre em sistemas religiosos ultraconservadores. Assim, por exemplo, na ditadura chilena, Pinochet comungava nas missas celebradas pelo então núncio Ângelo Sodano, e esse frequentava a casa, os almoços e os jantares opulentos oferecidos pelo ditador.

            O segundo motivo capaz de colocar os cristãos e as cristãs no meio do conflito – e também critério para não fugir dele – é a opção pelos pobres, consequência da atitude de se colocar do lado do povo. Segundo o próprio Jesus, a Boa-Notícia que ele veio trazer é destinada antes de tudo aos pobres, aos quais é anunciada a libertação e proclamada o fim da opressão (Lc 4,18-19). Por isso, desde o início do cristianismo, a opção pelos pobres é um dos sinais da autenticidade do seguimento de Jesus (Mt 11,4-6). A falta de opção pelos pobres é a expressão mais evidente de que a comunidade cristã se encontra numa situação de pecado, ou seja, de ruptura com Deus (Tg 2,1-13).

            Por essa razão, a unidade sonhada por Jesus para a sua comunidade (Jo 17,20-21) só pode ser feita em torno desses dois critérios. A unidade não pode ser imposta a partir de dogmas e de excomunhões e nem também por meio de consensos genéricos e ambíguos. A unidade se faz única e exclusivamente a partir da livre adesão dos discípulos e das discípulas a esses dois princípios. Sem livre adesão não há unidade; há autoritarismo ou falsidade. Foi o que entenderam as primeiríssimas comunidades cristãs, ainda no tempo dos apóstolos. Quando surge o primeiro grande conflito no cristianismo, os apóstolos se reúnem para conversar. E depois de muito diálogo chegam à conclusão que se devia deixar aos seguidores e às seguidoras de Jesus a máxima liberdade, exceto em três coisas indispensáveis e inegociáveis: o rompimento com a idolatria, a exclusão das uniões ilegítimas (At 15,28-29) e a opção pelos pobres (Gl 2,10). O rompimento com a idolatria é rompimento com toda religiosidade e religião que escraviza e desumaniza. A exclusão das uniões ilegítimas significava romper com uma relação que não considera a mulher como ser humano; uma relação sem compromisso com a dignidade da companheira. Portanto também uma opção pela pessoa mais frágil, mais pobre.

            Em recente diálogo com David Lyon, Zygmunt Bauman afirmou que ser ético não significa ter uma receita para uma vida fácil e confortável. Afirmou também que ser ético não é conformar-se às normas aceitas e obedecidas pela maioria, como pensam alguns, mas, quase sempre, resistência e ruptura com elas. E, quem resiste e rompe, paga um preço (Vigilância líquida, Zahar, 2014, p. 140-141). Penso que, olhando atentamente os Evangelhos, se possa dizer o mesmo do seguimento de Jesus.

Assim sendo, acreditamos que o papa Francisco já se encontra no meio do conflito e não pensa numa falsa unidade que junte o que não pode estar junto. Não se pode, por exemplo, juntar a Igreja representada por João XXIII e a Igreja representada por Pio IX e João Paulo II. São modelos eclesiológicos inconciliáveis, como a água e o óleo. Mesmo assim, cremos que Francisco, forçado na recente canonização de papas a juntar partes inconciliáveis que o sistema religioso anterior uniu artificialmente, prosseguirá no seguimento de Jesus, convocando a Igreja Católica inteira a fazer o mesmo. Resta saber se ele encontrará pessoas católicas com a mesma coragem, ou se irá se deparar cada vez mais com opositores resistentes ou, o que é pior, com sabotadores disfarçados de “santos do pau-oco”. Esses “santos”, geralmente vestidos impecavelmente de clergyman ou de batina, que, embora não afrontem diretamente o papa, induzirão o povo a permanecer numa religiosidade melosa, idolátrica, opressora, que esquece os pobres e sofredores, silenciando de propósito acerca dos recentes apelos do atual pontífice. Vamos esperar para ver ou vamos fazer alguma coisa?

 

terça-feira, 6 de maio de 2014

Eclesiologia


Uma discípula a caminho de Emaús?

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

No terceiro domingo de Páscoa do ciclo do Ano A costuma-se ler, na liturgia dominical da Igreja Católica Romana, o trecho do evangelho de Lucas, conhecido como “aparição de Jesus aos discípulos de Emaús” (Lc 24,13-35). Quem seriam esses discípulos? O texto original grego não diz. Aliás, nem usa o termo “discípulos” (mathetàs), mas a expressão grega “dúo éx autôn”, que a versão ecumênica da Bíblia traduz como “dois dentre eles”. Poderia ser um casal? Por que não? Tenho comigo uma reprodução de um lindo mural da cena de Emaús pintado pela irmã scalabriniana Elda Broilo, na qual ela representa estes dois como sendo um casal, acompanhado inclusive de uma criancinha. Esta leitura seria totalmente legítima e normal, uma vez que, segundo o próprio Lucas, no grupo de discípulos de Jesus havia também discípulas (Lc 8,1-3), que não somente o acompanhavam, mas sustentavam o grupo com seus bens.

Tudo seria tranquilo, se não fosse o machismo imperante nas Igrejas, de modo particular na Igreja Católica Romana. Lembro-me bem que em 2002, quando a CNBB completava 50 anos, durante a assembleia geral dos bispos, fomos no terceiro domingo de Páscoa para uma celebração eucarística no santuário de Aparecida. A comissão litúrgica da CNBB preparou uma encenação desse trecho do evangelho e, na encenação, colocou um discípulo e uma discípula (um casal). Isso despertou a ira de muitos bispos que apresentaram veementes protestos junto ao bispo responsável pela Comissão de Liturgia.

Para alguns desses bispos a encenação não era ortodoxa porque abria brechas para a possibilidade de se acreditar que também mulheres podiam receber os ministérios ordenados. Ora, a interpretação, além de ser esdrúxula e descabida, empobrece o próprio texto bíblico, uma vez que a intenção de Lucas não foi acentuar a questão dos ministérios ordenados. Lucas quis apenas mostrar a crise provocada nos discípulos pelo escândalo da cruz de Jesus, levando-os inclusive à perda da fé; fé que depois é recuperada e revigorada quando o Senhor ressuscitado parte e reparte o pão diante deles. Toda interpretação que for além, é mera fantasia e tentativa de forçar o texto a dizer o que ele nunca quis dizer.

            Esse episódio, acontecido em Aparecida, evidencia a necessidade de se rever a ótica machista, através da qual se continua lendo a Bíblia para excluir as mulheres de funções importantes na Igreja, inclusive o seu acesso a algumas coordenações de organismos eclesiásticos, de modo particular o acesso às instâncias de poder e de decisão e aos ministérios ordenados. Costuma-se justificar a proibição às mulheres com o argumento de que Jesus era do sexo masculino. E como algumas funções, como os ministérios ordenados, implicam uma dimensão sacramental, no sentido de que o ministro ordenado age “in persona Christi”, as mulheres não poderiam exercer de modo completo esta sacramentalidade.

            Ora, esse tipo de argumento não pode ser mais aceito porque o Segundo Testamento, em nenhum momento, realça a importância disso.           O que o Segundo Testamento considera relevante, sacramental, em primeiro lugar, é o fato de que o Filho de Deus se tornou humano, igual a nós em tudo, exceto no pecado (Hb 4,15). Os textos bíblicos não ressaltam o fato de que o Filho se tornou um humano do sexo masculino, mas que se tornou totalmente humano.

            O apóstolo Paulo deixa isso bem claro quando afirma que o fato marcante que está na origem do cristianismo não é que Cristo tenha nascido varão, mas que na plenitude dos tempos, ou seja, na hora certa, Deus nos enviou o seu Filho nascido de mulher para pagar a nossa alforria e realizar a nossa libertação (Gl 4,4-5). Esses detalhes podem passar despercebidos hoje, mas eram sumamente revolucionários no contexto cultural desta carta paulina, no qual predominavam o machismo e a escravidão. Numa época e numa cultura em que a genealogia da pessoa se fazia através de seus ancestrais masculinos, afirmar que Deus mandou o seu Filho “nascido de mulher” arrebentava por completo tal concepção machista. Paulo declara que no cristianismo não conta mais a condição sexuada da pessoa, o ser homem ou mulher, mas a inserção em Cristo (Gl 3, 28). Por isso somos todos e todas iguais, não no sentido de que o direito à diferença foi abolido, mas no sentido que todos e todas somos herdeiros ou herdeiras da mesma promessa (Gl 3,29). Logo, impedir a mulher de ter acesso a determinados espaços nas Igrejas com uma justificativa sexista é um absurdo total do ponto de vista bíblico.

            Neste sentido é que deve ser entendida a expressão dos Evangelhos, que costumamos traduzir em português com os termos “o Filho do Homem” (em grego: ‘o uiós toú anthropos). O termo “anthropos” em grego não significa o ser humano do sexo masculino, mas a humanidade, o ser humano em geral. Quando o Segundo Testamento quer falar do varão, da pessoa do sexo masculino, do macho, usa as palavras gregas andros (At 17,12) e aner (Mt 1,19).

            O segundo elemento importante, destacado pelos escritos neotestamentários, é que este “Filho da humanidade” decidiu assumir plenamente uma das mais profundas características dessa humanidade: a fragilidade, a fraqueza. Para o Segundo Testamento o que conta não é que Jesus seja macho, mas que é plenamente humano a ponto de abraçar também a nossa condição de seres frágeis e fragilizados. Coisa que, aliás, choca a mentalidade machista, segundo a qual “homem que é homem não chora”, ou seja, macho não demonstra fraqueza. Isso fica bem evidente quando o Segundo Testamento afirma que o Filho de Deus se manifestou e se fez sárx (Jo 1,14; 1Tm 3,16), termo grego que costuma ser traduzido com a palavra “carne”, mas cujo sentido verdadeiro é o de fragilidade, de fraqueza humana.

            Por fim, o terceiro aspecto evidenciado pela Bíblia cristã é o fato de que este Filho de Deus plenamente humanizado assume a fragilidade humana na sua condição mais extrema que é o despojamento, o rebaixamento humilhante, aceitando viver como escravo, morrer e morrer da pior maneira possível para aquela época (Fl 2,6-8). Essa disposição livre e soberana de Jesus de aceitar a condição de profunda humilhação, expressa pelo termo grego kénosis (Fl 2,7), é que permite a Jesus cumprir a vontade do Pai e realizar a libertação do universo e da humanidade. Não é a sua condição de macho, de varão, que lhe dá essa possibilidade, mas a sua disposição em assumir a condição humana também neste aspecto.

            Fica, pois, bem evidente que não se pode fundamentar a exclusão das mulheres das funções de poder e de decisão e dos ministérios ordenados com a desculpa de que Jesus era do sexo masculino e que, por isso, elas não estariam em condições de agir “in persona Christi”. Também não vale aquelas desculpas, como a de que Jesus não teria permitido que mulheres participassem de sua última ceia. Estudos sérios, que levam em conta o contexto da narrativa e o contexto cultural da época, não permitem chegar a tal conclusão. Seria simplesmente estúpido e ridículo que Jesus, naquele momento significativo de sua existência e de seu ministério, tivesse impedido as mulheres, que o acompanhavam desde a Galileia (Lc 8,1-3) e que estavam com ele em Jerusalém no momento de sua crucifixão e sepultura (Lc 24,10; Mc 15,40), de participar de sua última ceia.

Não se trata de dar mais poderes às mulheres, mas de, a partir da dignidade que vem do Batismo, abrir mais espaços para elas nas Igrejas, de modo que possam exercer serviços eclesiais que hoje estão reservados aos varões. Trata-se de reparar uma injustiça que fere a dignidade cristã.

Havemos, portanto, de concluir que a ampliação dos espaços da Igreja para uma presença feminina mais incisiva, como pediu recentemente o papa Francisco (EG, 103), só acontecerá de fato quando rompermos a barreira da exclusão das mulheres dos ministérios ordenados e das funções de direção e de decisão. Enquanto isso não acontecer estaremos apenas “dourando a pílula” ou tentando tapar o sol com uma peneira, uma vez que todos os outros espaços já estão sendo ocupados pelas mulheres e sem elas as Igrejas deixariam de existir. Mas para avançarmos nesta direção é preciso deixar de fazer leitura machista da Bíblia. É preciso parar de fazer leitura fundamentalista dos textos sagrados e aceitar, com mais serenidade e verdade, as implicações de uma correta e honesta hermenêutica.