Natal: comemoramos, mas não
entendemos
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e
professor universitário
Conhecemos a origem da festa cristã
do Natal. Ela remonta aos tempos da chegada do cristianismo à capital do
império romano. Ao chegar a Roma os cristãos encontram, por volta do dia 25 de
dezembro, uma festa ao deus Sol. Tratava-se de uma celebração para comemorar o
solstício de inverno do polo norte. A partir dessa data os dias começavam a ser
mais longos, o frio ia diminuindo, o calor aumentando. A terra ia ficando
aquecida e favorecendo o plantio. Numa tentativa de inculturação, o
cristianismo vai substituindo essa festa pela comemoração do nascimento de
Jesus, considerado a “luz do mundo”, ou “a luz da vida” (Jo 8,12).
Embora significativa, a festa do
Natal não entrou de imediato no calendário litúrgico cristão, voltado
inicialmente, e quase que exclusivamente, para a celebração da Páscoa, memorial
da morte e da ressurreição de Jesus. Com o passar do tempo a celebração do
nascimento de Jesus foi sendo misturada com a comemoração de São Nicolau, santo
que teria vivido no IV século, um velhinho bondoso que, segundo a tradição,
distribuía esmolas e presentes para as pessoas, especialmente para as crianças.
Aos poucos acontece a “noelização” do Natal, ou seja, a substituição do Menino
Jesus por Papai Noel. A comemoração do nascimento do Menino Jesus cede lugar ao velhinho de barbas brancas que, na noite
de Natal, sai deslizando pela neve com o seu trenó, a fim de levar presentes
para as pessoas.
De acordo com uma tradição, São
Francisco de Assis teria feito uma tentativa de resgate do significado cristão
do Natal, armando o primeiro presépio
da história. Ele queria expressar plasticamente a singeleza, a pobreza, a
ternura e a humildade do Filho de Deus. Buscava, assim, retornar às fontes
evangélicas e dar outro sentido àquela celebração. Mas, também depois disso, a
celebração do Natal não conseguiu encarnar na prática o que ela devia
significar. Os presépios se sofisticaram e aquela que deveria ser a festa da
singeleza do nascimento do Filho de Deus virou uma comemoração qualquer,
praticamente desvestida do seu sentido cristão mais profundo.
Com a chegada do capitalismo deu-se
a comercialização do Natal. Este
passou a ser uma festa do consumo.
Houve um distanciamento total do Menino Jesus, o qual foi substituído por
personagens e símbolos insignificantes e sem sentido. No hospital onde estou
fazendo tratamento, por exemplo, já foi feita a decoração do Natal. Não há
nenhum símbolo e nenhuma figura que lembre aquela criança que, segundo o evangelho
de Lucas, teria nascido pobre, numa manjedoura, na periferia de uma cidade
periférica da periferia do império romano. Uma rede de lojas aqui do Distrito
Federal está fazendo uma propaganda intitulada “Natal sem estresse”. As pessoas
podem ficar despreocupadas, pois essa rede possui mais de cinco mil produtos à
disposição da clientela e ninguém precisa ficar estressado, pois as lojas vão
garantir produtos em quantidade suficiente para todos fazerem suas compras
natalinas.
Ora, tudo isso mostra que nós
celebramos o Natal, mas não entendemos nada da sua mensagem cristã. Num país
como o Brasil, onde os que se declaram cristãos chegam a quase 90% da
população, isso é muito triste e revela a fragilidade desse cristianismo,
incapaz de entender e, sobretudo, de viver de sua essência. Ao mesmo tempo
revela a responsabilidade desses cristãos, particularmente de suas lideranças,
diante do que acontece. De fato, a comercialização do Natal é apenas um dos
aspectos de um cristianismo que, em nosso país, foi perdendo progressivamente a
sua capacidade profética de sacudir as consciências, principalmente dos
próprios cristãos.
Recentemente o teólogo Renold BLANK,
através de seu livro Deus e sua criação
(Paulus, 2013), nos ajudou a repensar o Natal numa perspectiva mais cristã, ou
seja, mais evangélica. Partindo do dado fundamental da fé, o qual afirma que,
através de sua encarnação, Jesus nos revelou a verdadeira identidade de Deus
(Jo 14,9), Blank nos convida a refazer nosso modo de celebrar o Natal. Diz ele:
“Somente na religião cristã veneramos um Deus que se revela na pequenez de uma
criança, em sua impotência e fraqueza, mas também em sua carência de amor.
Costumes natalinos desenvolvidos ao longo de séculos expressaram esse saber em
imagens que são, em parte, folclóricas. Todas elas, porém, permaneceram, por
assim dizer, na superfície do evento” (p. 189).
Eis a melhor definição para a atual
celebração natalina, mesmo por parte dos cristãos: pura superficialidade. E isso por várias razões. Em primeiro lugar
porque, ao fomentar o consumo, esse tipo de celebração se distancia daquele que
é a razão de sua existência, o Menino
Jesus, nascido pobre e simples na periferia de uma cidade insignificante.
Em segundo lugar, porque ao se apresentar como uma criança totalmente
desprotegida, necessitada de tudo, inclusive de carinho e de amor, o Natal
deveria revelar a verdadeira face de Deus. Não um Deus onipotente, poderoso,
castigador, dominador, mas um Deus humilde e simples e que quer ser venerado
assim. Mas os cristãos não entenderam até hoje esta lição do Natal e continuam
adorando um Deus distante, poderoso e até mesmo aterrorizador. Um Deus general,
controlador, fiscal, e que fica cobrando de nós um monte de dívidas. Por fim, o
Natal se tornou uma festa superficial porque não afeta os nossos relacionamentos. Há troca de presentes,
congratulações, lágrimas etc., mas deixamos tudo como está. Como cristãos não
nos importamos como o que está acontecendo. Não nos importamos com as
injustiças, com a miséria, com as desigualdades, com os males que afetam uma
sociedade, que se orgulha de ser cristã.
Blank afirma que no Natal, “Deus mostra
que ele não está interessado no poder. Em vez disso, ele vai ao encontro dos
seres humanos no sorriso de uma criança. De uma criança, porém, ninguém tem
medo [...]. Um Deus que se manifesta na forma de uma criança necessitada de
proteção, esse Deus pode ser amado porque não precisamos ter medo dele” (p.
190-191). Disso se conclui que o verdadeiro espírito de Natal não está nas
lojas, nas ceias e nem mesmo nas celebrações sofisticadas ou, às vezes,
tediosas que se fazem nas igrejas. Celebrar o Natal de verdade, dentro da
dinâmica da encarnação de Jesus, é amar um Deus que rejeitou todas as formas de
poder e de dominação. Mas é, acima de tudo, renunciar a todos os “mecanismos do
poder, seja no plano político, seja no plano religioso ou privado. Diante de uma
história secular de poder do cristianismo, isso deve ser ressaltado com toda
clareza” (p. 191-192).
O Natal nos revela que Deus não quer
ser visto, venerado, adorado como rei potente, todo-poderoso, vingativo,
castigador, rico e amigo dos ricos. Ele quer ser acolhido, amado, adorado como
um Deus fraco, que escolhe a fraqueza
e os fracos; que escolhe o caminho da insignificância, da pequenez, da pobreza.
Ele quer ser visto pelos cristãos e pelas cristãs como o Deus dos pobres, dos
pequenos, dos humildes e dos simples. Um Deus-criança
que suscita ternura, desperta carinho, alegria e do qual não é preciso ter
medo.
O fato de ainda continuarmos vendo
Deus de outra forma, e vivendo de maneira diferente daquela através da qual ele
se manifestou, prova que não entendemos nada do Natal. Celebramos, gastamos, enfeitamos
ruas e casas, mas não percebemos a mensagem
essencial desta festa. Revela a nossa responsabilidade de cristãos e de
cristãs em reverter essa situação. Precisamos retornar com urgência ao espírito
original do Natal. Àquele verdadeiro espírito que o evangelista Lucas quis nos
comunicar quando registrou que o Filho de Deus foi colocado “na manjedoura,
pois não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2,7).
Precisamos fazer o Natal voltar a
ser a festa do nascimento do Menino Jesus.
Precisamos desvestir o Natal de toda caricatura neoliberal, comercial e
exploradora. Os cristãos e as cristãs precisam voltar a ser discípulos do menino de Belém. Um bebê
pobre, indefeso, carente, pequeno e bem humano. Precisam mudar suas concepções
e suas experiências do Deus de Jesus. Melhor dizendo, os cristãos e as cristãs
precisam mudar de deus, deixando de ser idólatras, adoradores de um falso deus.
Nós, como o menino de Belém, precisamos aprender a amar de verdade, pois
somente o amor verdadeiro revoluciona o espírito do Natal. É claro que isso não
é fácil, pois, “de repente fica menos fácil cantar os antigos hinos de Natal,
sem começar ao mesmo tempo a amar as pessoas, abrir-lhes o coração e responder
suas perguntas com amor” (Blank, p. 195). Não podemos celebrar o Natal sem
responder às grandes perguntas que a humanidade de nossos dias, especialmente o
mundo dos pobres e excluídos, coloca para o cristianismo. Não há outro caminho
para devolver ao Natal o seu espírito cristão senão aquele de um Deus incômodo
que nos desestabiliza por completo ao se apresentar como uma criança que “toma
inequivocamente partido pelos escravos e contra o sistema de dominação
político-econômico” (Blank, p. 199). Um Deus que, na manjedoura de Belém, opta
decididamente pelos derrotados, pelos excluídos e pelos marginalizados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário