Morrer:
um ato profundamente humano
José
Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo,
teólogo, escritor e professor universitário
Dentro
em breve estaremos comemorando o Dia de
Finados. Veremos uma procissão de pessoas visitando os cemitérios. Alguns
irão apenas formalmente, pois pega mal os vizinhos saberem que a família nem
sequer visitou o túmulo dos falecidos. Outros chorarão lágrimas de crocodilo,
uma vez que, enquanto seus familiares eram vivos, nunca se preocuparam com
eles. Outros, ainda, farão visitas verdadeiras para, junto ao túmulo dos
mortos, fazer memória de seus antepassados. Mas creio que pouquíssimos
aproveitarão deste momento para meditar sobre a morte como mistério profundamente humano.
A vida termina no momento da
morte da pessoa. Ao dar seu último respiro o ser humano volta à terra de onde
foi retirado (Gn 3,19; Sl 90,3; Jó 34,15). A morte é um fenômeno natural que atinge todos os seres viventes. Não conhecemos
nenhum ser vivo que não passe por essa experiência. Todos nós somos concebidos,
gestados, nascemos, vivemos por um período e depois morremos. É a lei da
natureza e da qual não há como fugir. Afeta todos os seres vivos, sem exceção.
É
claro que existem mortes fora do tempo e antes da hora. Mortes provocadas pela
violência, pelo ódio, pela fome, pelas guerras, pelas drogas e pelo egoísmo
humano. Este tipo de morte não é natural e nem normal. Contra essa forma de
morte devemos nos opor de maneira decidida, uma vez que ela violenta um direito
fundamental dos seres vivos, que é morrer depois de uma boa longevidade e de
morte natural. Mas, fora isso, a morte faz parte do ritmo da vida e não há como
escapar dela.
Mas
por que, sendo um fenômeno natural, temos tanto medo da morte? Por que sofremos
quando alguém parte, mesmo depois de uma longa vida? Porque também isso é natural (Jo 11,33-36). Tão natural como
o medo que o bebê sente quando tem que deixar o útero para entrar nesta vida,
como dizem os estudiosos do assunto. A morte lança a pessoa numa dimensão nova
e da qual ainda não podemos participar, por enquanto. Porque ficamos, e não vamos
com a pessoa amada, sofremos com a sua perda, com a sua separação.
Até
certo tempo atrás os cristãos pensavam que a morte biológica era o resultado do pecado. Acreditava-se que os nossos progenitores, designados como
Adão e Eva, não teriam morrido se não tivessem pecado. Acreditava-se também que
a humanidade descendente de Adão e Eva não morreria se não tivesse acontecido
aquele primeiro pecado de nossos pais (Gn 3). Essa crença estava fundamentada
numa interpretação literal, e até fundamentalista, de alguns textos bíblicos
(Rm 5,12).
Hoje, porém, com a ajuda dos
conhecimentos científicos, já temos condições de saber que todos os seres vivos
morrem e que a morte é parte da dinâmica da vida. Morrer é natural e humano. Assim sendo, não podemos mais continuar
acreditando que a morte biológica é consequência do pecado de Adão e Eva, mesmo
porque Adão e Eva não foram personagens históricos reais, mas apenas nomes
simbólicos que representam a humanidade de todos os tempos. Adão significa
literalmente humano, ou melhor, aquele que foi feito com o barro (Gn 2,7). Eva
literalmente significa “a Vivente” ou “a mãe de todo vivente” (Gn 3,20).
Quando a Bíblia afirma que a
morte é fruto do pecado ela não está falando da morte biológica, mas de outros
dois tipos de morte. Antes de tudo da experiência pavorosa da morte que
atormenta a humanidade. De fato, mesmo sabendo que vamos morrer; que a morte é
natural, nós temos medo de morrer. Temos
medo de morrer porque não amamos. A falta de amor gera em nós o medo e o
pavor (1Jo 4,18). Aliás, existem pessoas que vivem como se não fossem morrer e
quando começam a perceber que “não vão ficar para a semente” entram em pânico e
em desespero. Esse medo é provocado em nós pela experiência do pecado. Porque
nos sentimos pecadores, ou seja, porque não amamos, tememos a hora derradeira,
o encontro definitivo com Deus.
Além disso, ao associar a
morte ao pecado, a Bíblia não está falando da morte biológica, mas daquilo que
o livro do Apocalipse chama de “segunda morte” (Ap 2,11; 20,6; 21,8), ou seja,
da perdição definitiva. Trata-se da
decisão deliberada da pessoa de não aceitar a salvação oferecida por Deus (Hb
10,26-31). Esta é a morte definitiva. Porém, nenhum de nós pode afirmar que
alguém morreu definitivamente, ou seja, rejeitou a salvação oferecida, pois o
julgamento cabe somente ao Filho de Deus (Jo 5,22). E o julgamento é sempre de
salvação e não de condenação (Jo 3,17).
Ao morrer, a pessoa morre
por inteira, morre na sua totalidade para depois ressuscitar. Antigamente se
pensava que morria somente o corpo e que a alma, sendo imortal, permanecia viva
esperando o dia da ressurreição. Hoje, com o avanço científico dos estudos
bíblicos, sabemos que o ser humano é uma unidade. Quando falamos de alma e de
corpo não estamos falando de duas realidades separadas, mas de um único ser
humano que possui duas dimensões inseparáveis: a dimensão corporal, ou seja, de
visibilidade e de relacionamento com os outros e a dimensão de interioridade,
de subjetividade. Assim sendo, quando a pessoa morre, ela morre por completo.
No judaísmo antigo não
existia a crença na ressurreição.
Acreditava-se que a vida terminava com a morte biológica. A vida das pessoas,
particularmente do homem (macho) continuava na descendência (Sl 102,28-29) e no
que ele deixava como grandes realizações (Pv 10,7; Sl 112,2.6). Jó, um dos
maiores cantores dessa realidade, assim proclama: “quem desce ao túmulo, nunca mais subirá” (7,9). Para o salmista
“os mortos já não louvam a Javé, nem os que descem ao lugar do silêncio” (Sl
115,17). Mais tarde passou-se a acreditar que as pessoas eram colocadas no Sheol (ou Xeol), uma espécie de lugar
para a purificação provisória dos mortos que esperavam a ressurreição. Porém,
no judaísmo antigo, o Sheol significava simplesmente túmulo, cova ou abismo.
Não se acreditava em ressurreição.
Portanto, a crença na
ressurreição é tardia. Começa a aparecer depois que o povo hebreu passou pela
amarga experiência do exílio, da diáspora, da dominação e da perseguição.
Alguns, diante de tanto sofrimento, da prepotência do opressor, começaram a se
perguntar se a vida se resumia a apenas aquilo: dor, sofrimento, injustiça etc.
Começa, então, a nascer a esperança de que há algo além da morte. Inicialmente
não era uma crença na vida após a morte, mas a certeza de que o opressor seria
destruído e, por isso, era preciso resistir até o fim, a fim de conhecer a
libertação (Dn 8-10). Aos poucos, por influência da cultura grega, essa crença
vai se transformando em crença na ressurreição, ou seja, numa vida que
continuaria depois da morte. Assim, já próximo dos tempos de Jesus, os escritos
gregos do Primeiro Testamento, como os Livros dos Macabeus, vão falar de
ressurreição dos mortos.
Mas, mesmo no tempo de
Jesus, a crença na ressurreição ainda não era coisa pacífica. Conhecemos a
polêmica do Mestre com os saduceus, que afirmavam não existir ressurreição (Mt
22,23). Será o cristianismo, a partir da experiência de Jesus, a proclamar
definitivamente a crença na ressurreição. Paulo será o grande apóstolo da
ressurreição, chegando a afirmar que se Cristo não ressuscitou a fé cristã seria
ilusória (1Cor 15,16-19).
Não se pense, porém, que a
vida que brota da ressurreição é algo que não tem nenhuma relação com a vida
presente. A vida a partir da ressurreição é diferente, é “semente
incorruptível”, mas sua origem será
sempre, como diz Paulo, aquela mesma que foi “semeada corruptível” (1Cor
15,42), ou “semeada corpo animal” (1Cor 15,44). Não será outra vida diversa
daquela que vivemos aqui. Estas palavras do apóstolo nos deveriam ajudar a
valorizar melhor essa vida e também a morte, como experiência profundamente
humana. Mais do que ficar focados ou até obcecados pelo “céu”, para onde
queremos ir, deveríamos viver mais intensamente esta vida presente e nos
prepararmos para morrer de uma forma profundamente
humana. “Se o grão de trigo não cai na
terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto” (Jo
12,24). Não seria a atual solidão das pessoas uma expressão
visível do medo de encarar a morte de maneira mais humana e natural? Não seria
a depressão, tão marcante em nossa
sociedade, uma forma de negar a realidade da morte, tão natural e tão humana?
Vale a pena, pelo menos no dia de Finados, pensar um pouco nisso.
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Aproveito
para informar que meus artigos sobre assuntos não ligados diretamente à
temática religiosa serão publicados, a partir de agora, no blog Centro de
Reflexão e de Análise da Realidade (CREAR): http://crear-lisboa.blogspot.com