Como a erva do campo
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e
professor universitário
Minhas amigas e meus amigos tomaram
conhecimento do problema de saúde que se abateu sobre mim, pegando-me de
surpresa e obrigando a submeter-me a um longo tratamento que durará, no mínimo,
uns seis meses. Tive a graça de acolher a surpresa com naturalidade, sem
revoltas, sem desespero e sem ânsia. Os vinte e oito dias passados inicialmente
na Ala de Hematologia do Hospital de Base do Distrito Federal me ofereceram a
oportunidade única de refletir sobre a vida humana. Dessa reflexão nasceu o
presente artigo que pretende ser apenas a introdução a um texto que, com minha
esposa Ana Márcia, pretendo publicar depois que tudo passar. O texto já tem até
título: Como a erva do campo. Reflexões
sobre a fragilidade e a brevidade da vida humana.
De um modo geral todas as culturas
religiosas afirmam que é vontade dos deuses que os seres humanos tenha vida plena e vida longa. Ter uma vida pela metade e uma vida curta não faz parte
do projeto inicial das divindades criadoras. No caso da tradição judaica e da
tradição cristã isso é muito explícito. Já nas primeiras páginas do Gênesis
encontramos o “jardim em Éden, no Oriente”, onde Deus coloca as pessoas humanas
que ele acabara de “modelar” (Gn 2,8). Este jardim, com um rio dividido em
quatro braços, rico de árvores formosas de todas as espécies, com frutas “boas
de comer” (Gn 2,9), é símbolo da abundância e, portanto, da vida plena querida
por Deus para os seres por ele criados. Tal narrativa, na verdade, representa
uma síntese de toda a tradição judaica, que a partir de experiências dolorosas,
simbolizadas pelo êxodo do Egito e pela travessia do deserto, aprendeu que é
desejo de Javé que as pessoas humanas tenham acesso a uma vida plena e intensa.
Mais tarde, já no cristianismo, as comunidades cristãs vão lembrar o dito de
Jesus que afirmou: “Eu vim para que
tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Mas para a tradição judaica e para a
tradição cristã vida plena significa vida
longa. Não se pode falar de vida em abundância quando as pessoas são
condenadas a morrer jovens, por qualquer motivo, sem atingir uma boa
longevidade. Desta forma, a vida longa, que ultrapassa os cem anos, vai sendo
considerada uma bênção divina para o ser humano. Isso era tão claro que a
Bíblia judaica, citada aqui na versão Pastoral (Paulus), ao falar do novo céu e
da nova terra que Javé irá criar, chega a afirmar: “Aí não haverá mais crianças que vivam alguns dias apenas, nem velhos
que não cheguem a completar seus dias, pois será considerado ainda jovem quem
morrer com cem anos, e quem não chegar aos cem anos será tido por amaldiçoado”
(Is 65,20). Num ambiente onde a média de vida era baixíssima e a mortalidade
infantil altíssima estas palavras do profeta devem ter ressoado com grande
impacto e gerado muita esperança.
Porém, a tradição judaica e a
tradição cristã são realistas. Sabem que vida plena e vida longa não significam
possuir a imortalidade dos deuses. O
ser humano faz parte da criação e, enquanto criatura, ele é finito, limitado,
frágil e mortal. Como os demais seres vivos, os humanos nascem, crescem, passam
pela terra e depois morrem. A ideia, muito cultivada no passado, de que se não
tivesse existido aquilo que costumamos chamar de “pecado original”, os humanos
seriam imortais, ou seja, não morreriam, não tem hoje o menor fundamento e a
menor consistência. A morte da qual fala o Gênesis (2,17) não se refere à morte
física, mas à incapacidade de, nas decisões e nos projetos existenciais,
escolhermos a vida e a felicidade (Dt 30,15-20). Isso é fácil de perceber
inclusive nos dias atuais: temos dificuldade de aderir a projetos de vida e,
quase sempre, apoiamos ou cedemos a projetos de morte, como aqueles que, no
momento, destroem o ambiente em que vivemos.
Portanto, mesmo sendo vontade do Criador que os humanos
tenham vida plena e vida longa, a fragilidade e a brevidade marcam
profundamente a existência humana. “Os
dias do homem são como a relva, ele floresce como a flor do campo. Roça-lhe um
vento, e já não existe, e ninguém mais reconhece o seu lugar” (Sl
103,15-16). E, muitas vezes, tal fragilidade e tal brevidade se tornam ainda
mais dramáticas porque os seres humanos se recusam a caminhar pela lógica
divina. Isso torna a vida penosa, difícil e hostil e o próprio ambiente passa a
ser agressivo e desumano (Gn 3,17-19). Basta olharmos, hoje, à nossa volta para
constatarmos essa realidade. Por isso mesmo a condição para uma vida plena e
longa é aceitarmos a nossa condição de simples criaturas e aprendermos a
conviver com tal condição, sem revoltas e sem resignações: “os dias que me destes são um palmo apenas” (Sl 39,6).
Convém, porém, salientar que,
segundo a tradição judaica e a tradição cristã, há uma maneira simples e
fecunda de resgatar a plenitude da
vida, suavizando e até eliminando os impactos duros e violentos da fragilidade
e da brevidade da existência humana. E esta forma simples não toca à divindade,
mas aos humanos. Cabe a nós realizar essa importante tarefa. Trata-se da solidariedade e do amor. Ao sermos solidários com os que sofrem e ao manifestarmos em
profundidade o nosso amor, especialmente pelos mais sofridos, nós contribuímos
concretamente para que o projeto original de Deus volte a acontecer no mundo.
Tanto a Bíblia judaica como a Bíblia cristã estão permeadas desse convite
permanente à solidariedade e ao amor. O povo hebreu foi sempre chamado a “abrir
a mão” para o irmão pobre, para os indigentes, oferecendo-lhes o que eles
necessitam, sem “pensamento mesquinho”, sem má vontade, sem avareza. A “mão
fechada”, ou seja, a falta de solidariedade é considerada pela Bíblia hebraica
um pecado grave que Javé repudia (Dt 15,7-11). Jesus segue essa tradição
judaica e, diversas vezes, exorta as pessoas a serem solidárias. Ao contar a
parábola do “bom samaritano” ele convida o seu interlocutor a “fazer a mesma
coisa” (Lc 10,37).
Creio que a maior graça que me foi
dada nestes dias que passei no hospital foi sentir de perto a solidariedade das
pessoas. Além do carinho, da ternura, do amor e do cuidado de minha amada
esposa Ana Márcia, as amigas e os amigos do Distrito Federal logo se
mobilizaram para nos apoiar de todas as formas possíveis. Pelo Brasil e até no
exterior pessoas me davam forças através de uma palavra de ânimo e através da
oração. Recebemos dezenas de telefonemas. Outros se perderam, pois não dávamos
conta de responder a todos. Como
precisei de transfusão de sangue e de plaquetas, estes amigos organizaram uma
rede de doadores e mais de quarenta pessoas foram até o Hemocentro de Brasília
para doar sangue. Assim, não somente eu, mas outras pessoas que estavam na
mesma situação puderam se beneficiar disso.
Antes eu disse que é preciso aceitar
a condição humana da fragilidade e da brevidade sem revoltas, mas isso não pode
significar resignação. Desta forma, uma das maneiras de rezarmos nestas horas é
protestando, reclamando de Deus que
“permitiu” tal situação. Lamentavelmente uma certa religiosidade alienante das
Igrejas eliminou esta forma de rezar, classificando-a de blasfêmia e obrigando
as pessoas a aceitarem tudo como
sendo vontade de Deus. Mas tanto na Bíblia judaica como na Bíblia cristã
protestar contra Deus, reclamando do que acontece é uma das formas clássicas de
oração. Os salmistas foram especialistas na oração de protesto. Eles reclamam
porque Deus fica mudo e imóvel diante do mal (Sl 83,2). Conhecemos as palavras
do Salmo 22 que, segundo os evangelistas, foram recitadas por Jesus no momento
de sua morte na cruz: “Meu Deus, meu Deus,
por que me abandonastes? Apesar dos meus gritos, minha prece não te alcança! De
dia eu grito, meu Deus e não me respondes. Grito de noite, e não fazes caso de
mim!” (Sl 22,2-3).
Mas o principal ícone
deste protesto contra Deus é Jó que, diferentemente do que se pensa, não pode e
nem deve ser tido como símbolo de paciência, mas, pelo contrário, de protesto
contra um Deus que faz sofrer o inocente. Diante dos amigos que insistem em lhe
dizer, segundo a mentalidade da época, que o seu sofrimento era a “retribuição”
por crimes ou pecados cometidos por ele, Jó protesta e não aceita
resignadamente o sofrimento. Reclama de Deus que lhe “nega justiça” e lhe
“enche de amargura” e declara que não aceita a acusação de estar pagando pelo
que fez, pois isso seria o mesmo que dizer falsidade e pronunciar mentiras, ou
seja, violar os mandamentos da Torá (Jó 27,1-4). E conclui: “Longe de mim dar razões a vocês! Vou me
declarar inocente até o meu último suspiro. Vou me agarrar à minha justiça, e
não vou ceder. Minha consciência não reprova nenhum dos meus dias” (Jó
27,5-6)
Também eu tive que protestar, pois
foi no campo religioso que tivemos a experiência mais negativa durante a minha estadia no Hospital de Base do
Distrito Federal. De vez em quando, especialmente nos finais de semana, com a
conivência de certos funcionários do Hospital, a enfermaria onde eu me
encontrava era invadida por evangélicos e alguns católicos que caiam sobre nós
como verdadeiros urubus em cima de uma carniça. Sem o menor respeito pelo
ambiente público, pela diversidade, sem pedir a devida licença, chegavam
fazendo suas pregações histéricas e moralistas à base de gritos, alaridos,
ameaças, deixando entender para nós doentes que a nossa enfermidade era castigo
e que só restava uma alternativa: “se converter a Jesus”.
Certo dia apareceu uma mulher que se
identificou como sendo da Pastoral da Saúde da Paróquia São Camilo de Lélis.
Não se diferenciava dos evangélicos na histeria e na pregação moralista. Notei
que não havia nenhum preparo para ser agente da Pastoral da Saúde e conclui que
as paróquias e seus párocos precisam preparar melhor essa gente. Fiquei
pensando no paradoxo: enquanto ali na enfermaria tinham pessoas precisando de
solidariedade, de calor humano, de carinho, de ternura e até de coisas básicas
como uma roupa, um lençol e um remédio, aquela mulher da Pastoral da Saúde
fazia para nós apenas um discurso histérico, moralista e vazio. Imaginei São Camilo
de Lélis decepcionado com aquela cena, ele que não saiu pelos hospitais fazendo
pregações moralistas, mas pelas ruas recolhendo, tratando e, sobretudo, amando
os pobres doentes. Penso que se ele estivesse naquela enfermaria teria, como
Jesus no templo, enxotado a chibatadas aquela mulher que de Pastoral da Saúde
nada entendia.
“Mesmo no mais escuro da noite temos
o direito de esperar alguma iluminação” (Hannah Arendt). Note-se bem o que diz
Arendt: “temos o direito de esperar”.
A minha estadia no hospital convenceu-me de que precisamos cuidar mais de
nossos doentes, particularmente dos mais pobres, cujo sofrimento é duplicado
pela condição social em que se encontram. E as Igrejas, aos invés de pregações
histéricas, idiotas e vazias, precisam ser solidárias com tais pessoas. Como
bem nos ensina a parábola de Lucas, o samaritano que encontrou o homem “meio
morto” (Lc 10,30), na estrada que desce de Jerusalém para Jericó, não lhe fez
discursos vazios e moralistas, para depois seguir adiante “pelo outro lado” (Lc
10, 31). Ele aproximou-se do ferido,
fez curativos e o levou para um lugar onde ele poderia se recuperar totalmente,
pagando todas as despesas. Ou seja, foi solidário. Precisamos apenas fazer
isso, pois o resto é hipocrisia, religião fingida e idolátrica, histérica e
desumana.