Ana Marcia
Guilhermina de Jesus
Muitas
vezes a voz do silêncio nos enclausura de maneira forte, mas necessária, grita
alto e ressoa muito mais do que palavras proferidas, principalmente nos
momentos de dor e sofrimento.
Passei
esses trinta dias num deserto, sofrendo a dor da perda, tentando entender o que
realmente aconteceu. Fiz mil perguntas, busquei milhares de respostas, ouvi falas
de muitos parentes, amigos, conhecidos e colegas e na maioria das vezes, de
pessoas até desconhecidas. Gente de várias partes do Brasil e da Itália se
fizeram presentes neste momento tão difícil, tentando amenizar a minha dor e
aliviar o meu sofrimento. Senti o quanto é importante a solidariedade, a partilha
e o carinho das pessoas, senti a presença de Deus em cada uma delas, que me
abraçando e acariciando, me encheram de
ternura.
O
nosso Deus que se fez presente em Jesus Cristo no ato da criação continua se
fazendo presente em cada ser humano, pude perceber isso em cada gesto de
carinho que recebia.
Creio
que ao soprar a vida no ato de criar o criador deu este sopro profundo de amor,
ternura e compaixão, o qual fez o ser humano se tornar um ser diferente das
outras criaturas, e é justamente essa humanização que sustenta a humanidade
inteira. Posso dizer com toda a força o quanto esta presença está sendo amiga,
me sustentando, alimentando minha fé, minha confiança e mantendo viva a chama
da esperança.
Comecei
dizendo aqui, que silenciei porque o silêncio faz parte do ritual de luto que
estou vivenciando, até porque é preciso organizar a mente, reformular as
palavras, refazer muitos sentimentos, que com a morte, se misturam dentro de
nós.
Quem
morre nasce para uma nova vida. Passa pelo mistério da ressurreição. A outra
metade que fica precisa necessariamente passar pela reconstrução e contemplar
esse grande mistério da ressurreição. No caso meu e de Lisboa, por exemplo, nós
dois vivemos com intensidade o amor. O tempo que passamos juntos foi de muita
cumplicidade, intimidade, carinho, ternura, respeito, amor, solidariedade, uma
relação com muita clareza. Tudo sempre foi muito puro, transparente e coerente,
em plena luz. Criamos laços fortes e profundos de confiança desde o momento que
nos conhecemos. Por esse motivo o sofrimento e a dor estão sendo muito grandes.
Foi-se, uma parte de mim.
Em
nossos corações apaixonados, um existia para o outro, um estava para o outro
com eterna e profunda doação. Com o tempo esses laços foram se solidificando e
o amor intensificava-se cada vez mais a ponto de dizermos um para outro: “te amo a cada dia e cada vez mais, se é que
ainda cabe mais amor dentro de nossos corações”.
Esse
sentimento profundo que marcou nossas vidas parecia não caber dentro de nós e
por isso extravasava na partilha, na solidariedade para com as outras pessoas,
principalmente para com aquelas mais carentes de amor, como é o caso de muitas
em nossa sociedade tão excludente. Por este motivo, nosso amor nunca ficou
fechado entre nós, ele era aberto como raios de sol tentando aquecer outros
corações, partilhando um pouco de nós mesmos e da nossa felicidade.
Foi
esse o motivo que me fez voltar tão cedo para o nosso apartamento, já que havia
em mim certa resistência em enfrentar esta realidade. Quando entrei aqui pela
manhã senti forte a presença dele. Senti que aqui está a nossa vida, a nossa
aliança de amor. Foi aqui que construímos os melhores momentos de nossas vidas.
Aqui foi o lugar das buscas, das lutas e das conquistas. Aqui passamos muitas
noites de núpcias, dias e noites de profundo e intenso amor e carinho. Aqui,
neste lugar, a cada instante crescia o amor de um pelo outro, intensificava-se o
prazer de estarmos juntos, a alegria de podermos gozar da presença um do outro
e a certeza de que esse amor era a prova maior do amor de Deus por nós, tanto
que repetíamos sem nos cansar, que um era o presente da Trindade para o outro. Por tudo isso, ter que devolver este presente
tão precioso para a Trindade foi e está sendo o mais difícil.
Às
vezes o meu corpo se sente todo despedaçado, meu coração, partido, meus ossos
roídos. Parece que não vou suportar tanta dor... Meu corpo ferido, minha alma
geme e eu choro, eu grito, eu reclamo, eu brigo, eu esperneio e respiro (pausa).
Por
isso, muitas vezes me calei para não brigar com Deus, com o mundo e
principalmente comigo mesma. Ao entrar aqui, senti que está na hora de sair do
silêncio e falar. Falar da vida dele para os quatro ventos... Falar que não fui
eu, apenas, que o perdi. A Igreja também perdeu um grande teólogo e filósofo.
Perdeu um profeta, que, com coragem sempre gritou como Jeremias na porta do
templo (Jr 7,2-3), anunciando o reino e denunciando as injustiças. Como um sinalizador dos tempos contribuiu com
a Teologia da Libertação, que visa o trabalho preferencial pelos pobres e
excluídos. Ele, com sua audácia e perspicácia conseguia enxergar e antecipava
os tempos, dando assim, a sua contribuição profética.
A
Pastoral Vocacional perdeu um apostolado das vocações. Toda a sua vida, todo
seu tempo foram de doação sem reserva, preocupado com as vocações, de cada ser
humano. Seu desejo era que cada pessoa se realizasse, acolhendo a própria vocação
como um chamado de Deus e assim pudesse viver de forma digna e coerente. Para
ele, a pessoa só se realizava quando respondesse de forma consciente à sua
vocação.
O
mundo perdeu um escritor que falou, profetizou, anunciando de forma clara e
profunda o amor da Trindade. Quando sentia que esse amor deveria ser contado de
forma poética, ele o fez com romantismo e elegância. Porém, quando sentia que
esse amor deveria ser denúncia à desumanidade, desigualdade e tudo aquilo que
fere a dignidade humana, ele gritava com força, altivez e vivacidade para ser
ouvido.
Ele
foi radical em suas falas, coerente em suas atitudes, buscando sempre estar ao
lado dos mais fracos e excluídos. Era a voz do povo. Daqueles que não tinham
voz e nem vez. Era o pensamento crítico e a reflexão espiritual a serviço
daqueles com pouco esclarecimento das coisas, na batalha contra a alienação e
buscando sempre a ética.
Os
estudantes perderam um grande professor, o qual gostaria de ver seus alunos conscientes
de uma formação mais crítica. Queria que, não apenas se formassem trabalhadores
serviçais, para sofrer na mão do Capital e nem se acabando nas vicissitudes por
ele engendradas. Queria que eles buscassem entender o país e a sociedade na
qual vivem e assim se capacitassem para oferecer sua contribuição na construção
de uma sociedade mais justa e fraterna.
A
família biológica perdeu um filho comprometido, que deixou literalmente escrito
o amor e o respeito que tinha pelos pais.
Os
amigos perderam um grande companheiro, que nunca se esquecia de dizer: “obrigado pela força da
amizade, pela solidariedade e pela partilha”. Despido de vaidade, atendia a
todos de igual para igual, sem fazer distinção alguma, seja de idade, gênero ou
classe social.
Nem o tempo nem a morte, nada e ninguém vai nos
separar. Nosso amor é eterno. Você está sempre vivo em meu coração, em minha
vida, em minha alma, em todo o meu ser. Te amarei sempre aqui e por toda a
eternidade. Amém.
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