quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Avaliação de início de ano


“No início não foi assim”

 José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            O começo de um novo ano civil é apenas uma convenção humana e nada mais. Há bilhões de ano a Terra gira em torno do Sol, completando uma volta em torno dele a cada 365 dias e algumas horas. Assim sendo, o começo de um novo ano não significa nada, além do início da recontagem de um novo período de 365 ou 366 dias. Isso não tem nenhuma influência sobre as pessoas e sobre as suas vidas, a não ser levá-las a trocar de calendário. Mas hoje nem precisamos fazer isso, pois os computadores e as outras formas de tecnologias, como os celulares, se encarregam de fazer a troca. Desta forma até mesmo aquilo que antes era uma novidade, hoje se tornou rotina. Minutos após a virada do ano e a queima de fogos tudo volta a ser como antes; tudo volta ao normal.

Porém, para as cristãs e os cristãos, o início de um novo ano pode se apresentar como uma oportunidade para uma reflexão mais séria. Embora o evento não passe de um mero início de nova recontagem de dias e da troca de algum dígito no calendário, pode ser uma ocasião para aprofundarmos alguns elementos de nossa fé e para a reconstrução de nossas vidas, para a nossa conversão. Pode ser um verdadeiro sinal dos tempos, como nos alertava Jesus (Lc 12,54-57) e como amava repetir o papa João XXIII e o Concílio Vaticano II. Podemos aproveitar deste momento para uma parada, para um balanço de vida, para uma avaliação ou análise da realidade de nossa vida pessoal e comunitária.

Neste artigo quero propor que façamos esta avaliação a partir do conceito de início, do conceito de princípio, assim como aparece na Bíblia. Trata-se de aproveitar da ocasião da chegada de um novo ano para uma reflexão profunda sobre o que significa voltar ao início, voltar ao princípio, voltar às origens.

Quando Jesus foi interpelado por alguns fariseus acerca da prática do divórcio, ele deixou bem claro que tal prática era ilícita e injusta. E para fundamentar a sua posição ele recorre às origens: “Moisés permitiu o divórcio, porque vocês são duros de coração. Mas não foi assim desde o início” (Mt 19,8). Ao dizer isso, Jesus deixa claro que há um projeto de Deus que remonta às origens, o qual foi desvirtuado pelo egoísmo e pelos caprichos humanos. Por essa razão é preciso voltar ao início, ou seja, ao projeto inicial de Deus. Se não houver essa volta estaremos na contramão, destruindo por completo o sonho do Criador para a humanidade.

Pena que as Igrejas, até hoje, tenham tratado o divórcio apenas como uma questão de sexo e não tenham conseguido entender o que Jesus queria propor. Para o Mestre o divórcio não era permitido por causa de possíveis relações sexuais fora do casamento, com uma terceira pessoa, mas por ser uma decisão unilateral e arbitrária do homem, que deixava a mulher numa situação dramática. Dentro da cultura palestina da época, a mulher repudiada passava a ser discriminada e odiada. Dificilmente achava um homem que quisesse se casar com ela. E como, culturalmente, a mulher era totalmente dependente do homem, ela ficava completamente desemparada. Só lhe restava morrer de fome, mendigar ou prostituir-se. Diante do exposto pelos fariseus, Jesus se posiciona contra o divórcio, não para condenar uma possível relação sexual extraconjugal, mas para defender a igualdade e a dignidade da mulher, e livrá-la de uma tremenda injustiça. E fundamenta a sua defesa voltando às origens, lembrando que “o Criador, desde o início, os fez homem e mulher” (Mt 19,4).

A partir do exemplo que acabei de apresentar, podemos aproveitar do início do novo ano para fazer uma grande avaliação de nossa vida pessoal e de nossa vida comunitária e social. O que está de acordo com o projeto inicial de Deus? O que precisa ser refeito, tendo presente o princípio de tudo, a proposta original do Criador?

É bom começar pela própria vida pessoal. Em termos pessoais poderíamos avaliar o nosso tipo de religiosidade. Como é a minha prática religiosa? Sou daqueles que gostam de muita pompa, de muito incenso, de muita loa, daquele tipo de culto que Deus rejeita como “coisa nojenta”, porque desprovido de toda sensibilidade para com a justiça (Is 1,10-15)? Ou procuro uma forma de vivência da fé que se preocupa em “acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos” (Is 58,6-7)? Sinto-me incomodado com aquela Igreja que anuncia a Boa-Nova aos pobres (Lc 4,18-19) e denuncia explicitamente a exploração praticada pelos ricos (Tg 5,1; Lc 6,24-25)? Quero uma Igreja que não se meta em política, que não fale de injustiças e das desigualdades sociais ou prefiro uma Igreja comprometida e corajosa, capaz de rejeitar toda piedade transformada em “fonte de lucro” (1Tm 6,6)?

Mas tal avaliação não deve ficar apenas no âmbito da individualidade. É preciso que façamos juntos uma grande avaliação de nossa vida comunitária e de nossa vida social. Poderíamos começar, por exemplo, com uma avaliação de nossas celebrações eucarísticas, ou, como chamam algumas Igrejas, da celebração da Ceia do Senhor. Será que elas, como se desenvolvem atualmente, conservam aquela essência das origens? Não são celebrações excludentes, que deixam de fora os mais pobres, aqueles que não têm nada (1Cor 11,20-22)? Será que em nossos templos luxuosos os mais pobres têm espaço? Ou, de repente, “sem querer, querendo”, estamos empurrando os mais pobres e excluídos para fora de nossos templos e de nossas assembleias (Tg 2,1-4)? Será que a celebração da Ceia do Senhor, instituída como memorial da morte e ressurreição de Jesus (1Cor 11,23-26), e para “a remissão dos pecados” (Mt 26,28), não está excluindo aqueles que os “donos das Igrejas” consideram “pecadores”? Em minha comunidade, quem pode participar da Ceia do Senhor? Com qual autoridade alguns “doutores da Lei” tentam impedir que os tidos por eles como “pecadores” sentem-se à mesa, comam e bebam com o Mestre (Mc 2,15-17)?

E como anda o nosso compromisso social? Somos apenas comedores de hóstias, frequentadores de templos, de cultos, de missas ou estamos comprometidos com a transformação de nossa sociedade? Apenas reclamamos da corrupção ou fazemos algo para não permitir que isso aconteça? Será que também nós, cristãos e cristãs, não somos corruptores? Não costumamos aproveitar de certas ocasiões para sair “levando vantagem em tudo”? Será que não estamos transformando a prática religiosa num meio para encobrir as nossas maracutaias?

Como anda a nossa coragem profética? Estamos denunciando aqueles que estão explorando os pobres, os trabalhadores (Tg 5,1-6)? Ou, de repente, fazemos parte daquele grupo de gente muito piedosa que não paga o salário justo, que não respeita o direito dos trabalhadores, da pessoa que limpa a nossa casa, lava e passa a nossa roupa? No prédio onde moro, por exemplo, há uma família muito católica. Vive o dia todo com a televisão conectada nas redes católicas, rezando o terço da misericórdia e venerando como deuses Padre Marcelo, Padre Robson, Padre Fábio de Melo etc. etc. Mas não paga o salário justo à diarista que faz a limpeza da casa e chega mesmo a negar-lhe o almoço, obrigando-a a ter que ir almoçar fora. Quando a diarista almoça com a família, a comida é descontada do pagamento da diária.

E como anda a nossa participação na política? Somos políticos ou politiqueiros? Pensamos no bem comum, no bem de todas as pessoas, ou estamos interessados em fazer politicagem, de modo que o nosso voto traga benefícios pessoais? Como nos comportamos nas últimas eleições? Defendemos candidatos que tinham projetos sérios e em favor dos mais pobres e excluídos ou nos juntamos àqueles que defendiam um projeto neoliberal excludente? Ao votar, ou até deixar de votar, pensamos nos pequenos e indefesos ou aderimos a partidos e candidatos que “esmagam o fraco” (Am 5,11), que exploram os necessitados e são “opressores dos pobres do país” (Am 8,4-6)?

Poderíamos multiplicar as perguntas. Mas penso que aquelas aqui apresentadas já são suficientes para que possamos entender o que significa essa avaliação de final e de início de ano, na perspectiva bíblica daquilo que os texto sagrados chamam de “início”. O importante é estar acordado, ou seja, perceber que a cada momento da vida Deus nos interpela e nos convida à mudança de vida, à conversão. E felizes aqueles “que o Senhor encontra acordados quando chega” (Lc 12,37).

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Sentido do Natal


Natal: comemoramos, mas não entendemos

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Conhecemos a origem da festa cristã do Natal. Ela remonta aos tempos da chegada do cristianismo à capital do império romano. Ao chegar a Roma os cristãos encontram, por volta do dia 25 de dezembro, uma festa ao deus Sol. Tratava-se de uma celebração para comemorar o solstício de inverno do polo norte. A partir dessa data os dias começavam a ser mais longos, o frio ia diminuindo, o calor aumentando. A terra ia ficando aquecida e favorecendo o plantio. Numa tentativa de inculturação, o cristianismo vai substituindo essa festa pela comemoração do nascimento de Jesus, considerado a “luz do mundo”, ou “a luz da vida” (Jo 8,12).

            Embora significativa, a festa do Natal não entrou de imediato no calendário litúrgico cristão, voltado inicialmente, e quase que exclusivamente, para a celebração da Páscoa, memorial da morte e da ressurreição de Jesus. Com o passar do tempo a celebração do nascimento de Jesus foi sendo misturada com a comemoração de São Nicolau, santo que teria vivido no IV século, um velhinho bondoso que, segundo a tradição, distribuía esmolas e presentes para as pessoas, especialmente para as crianças. Aos poucos acontece a “noelização” do Natal, ou seja, a substituição do Menino Jesus por Papai Noel. A comemoração do nascimento do Menino Jesus cede lugar ao velhinho de barbas brancas que, na noite de Natal, sai deslizando pela neve com o seu trenó, a fim de levar presentes para as pessoas.

            De acordo com uma tradição, São Francisco de Assis teria feito uma tentativa de resgate do significado cristão do Natal, armando o primeiro presépio da história. Ele queria expressar plasticamente a singeleza, a pobreza, a ternura e a humildade do Filho de Deus. Buscava, assim, retornar às fontes evangélicas e dar outro sentido àquela celebração. Mas, também depois disso, a celebração do Natal não conseguiu encarnar na prática o que ela devia significar. Os presépios se sofisticaram e aquela que deveria ser a festa da singeleza do nascimento do Filho de Deus virou uma comemoração qualquer, praticamente desvestida do seu sentido cristão mais profundo.

            Com a chegada do capitalismo deu-se a comercialização do Natal. Este passou a ser uma festa do consumo. Houve um distanciamento total do Menino Jesus, o qual foi substituído por personagens e símbolos insignificantes e sem sentido. No hospital onde estou fazendo tratamento, por exemplo, já foi feita a decoração do Natal. Não há nenhum símbolo e nenhuma figura que lembre aquela criança que, segundo o evangelho de Lucas, teria nascido pobre, numa manjedoura, na periferia de uma cidade periférica da periferia do império romano. Uma rede de lojas aqui do Distrito Federal está fazendo uma propaganda intitulada “Natal sem estresse”. As pessoas podem ficar despreocupadas, pois essa rede possui mais de cinco mil produtos à disposição da clientela e ninguém precisa ficar estressado, pois as lojas vão garantir produtos em quantidade suficiente para todos fazerem suas compras natalinas.

            Ora, tudo isso mostra que nós celebramos o Natal, mas não entendemos nada da sua mensagem cristã. Num país como o Brasil, onde os que se declaram cristãos chegam a quase 90% da população, isso é muito triste e revela a fragilidade desse cristianismo, incapaz de entender e, sobretudo, de viver de sua essência. Ao mesmo tempo revela a responsabilidade desses cristãos, particularmente de suas lideranças, diante do que acontece. De fato, a comercialização do Natal é apenas um dos aspectos de um cristianismo que, em nosso país, foi perdendo progressivamente a sua capacidade profética de sacudir as consciências, principalmente dos próprios cristãos.

            Recentemente o teólogo Renold BLANK, através de seu livro Deus e sua criação (Paulus, 2013), nos ajudou a repensar o Natal numa perspectiva mais cristã, ou seja, mais evangélica. Partindo do dado fundamental da fé, o qual afirma que, através de sua encarnação, Jesus nos revelou a verdadeira identidade de Deus (Jo 14,9), Blank nos convida a refazer nosso modo de celebrar o Natal. Diz ele: “Somente na religião cristã veneramos um Deus que se revela na pequenez de uma criança, em sua impotência e fraqueza, mas também em sua carência de amor. Costumes natalinos desenvolvidos ao longo de séculos expressaram esse saber em imagens que são, em parte, folclóricas. Todas elas, porém, permaneceram, por assim dizer, na superfície do evento” (p. 189).

            Eis a melhor definição para a atual celebração natalina, mesmo por parte dos cristãos: pura superficialidade. E isso por várias razões. Em primeiro lugar porque, ao fomentar o consumo, esse tipo de celebração se distancia daquele que é a razão de sua existência, o Menino Jesus, nascido pobre e simples na periferia de uma cidade insignificante. Em segundo lugar, porque ao se apresentar como uma criança totalmente desprotegida, necessitada de tudo, inclusive de carinho e de amor, o Natal deveria revelar a verdadeira face de Deus. Não um Deus onipotente, poderoso, castigador, dominador, mas um Deus humilde e simples e que quer ser venerado assim. Mas os cristãos não entenderam até hoje esta lição do Natal e continuam adorando um Deus distante, poderoso e até mesmo aterrorizador. Um Deus general, controlador, fiscal, e que fica cobrando de nós um monte de dívidas. Por fim, o Natal se tornou uma festa superficial porque não afeta os nossos relacionamentos. Há troca de presentes, congratulações, lágrimas etc., mas deixamos tudo como está. Como cristãos não nos importamos como o que está acontecendo. Não nos importamos com as injustiças, com a miséria, com as desigualdades, com os males que afetam uma sociedade, que se orgulha de ser cristã.

            Blank afirma que no Natal, “Deus mostra que ele não está interessado no poder. Em vez disso, ele vai ao encontro dos seres humanos no sorriso de uma criança. De uma criança, porém, ninguém tem medo [...]. Um Deus que se manifesta na forma de uma criança necessitada de proteção, esse Deus pode ser amado porque não precisamos ter medo dele” (p. 190-191). Disso se conclui que o verdadeiro espírito de Natal não está nas lojas, nas ceias e nem mesmo nas celebrações sofisticadas ou, às vezes, tediosas que se fazem nas igrejas. Celebrar o Natal de verdade, dentro da dinâmica da encarnação de Jesus, é amar um Deus que rejeitou todas as formas de poder e de dominação. Mas é, acima de tudo, renunciar a todos os “mecanismos do poder, seja no plano político, seja no plano religioso ou privado. Diante de uma história secular de poder do cristianismo, isso deve ser ressaltado com toda clareza” (p. 191-192).

            O Natal nos revela que Deus não quer ser visto, venerado, adorado como rei potente, todo-poderoso, vingativo, castigador, rico e amigo dos ricos. Ele quer ser acolhido, amado, adorado como um Deus fraco, que escolhe a fraqueza e os fracos; que escolhe o caminho da insignificância, da pequenez, da pobreza. Ele quer ser visto pelos cristãos e pelas cristãs como o Deus dos pobres, dos pequenos, dos humildes e dos simples. Um Deus-criança que suscita ternura, desperta carinho, alegria e do qual não é preciso ter medo.

            O fato de ainda continuarmos vendo Deus de outra forma, e vivendo de maneira diferente daquela através da qual ele se manifestou, prova que não entendemos nada do Natal. Celebramos, gastamos, enfeitamos ruas e casas, mas não percebemos a mensagem essencial desta festa. Revela a nossa responsabilidade de cristãos e de cristãs em reverter essa situação. Precisamos retornar com urgência ao espírito original do Natal. Àquele verdadeiro espírito que o evangelista Lucas quis nos comunicar quando registrou que o Filho de Deus foi colocado “na manjedoura, pois não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2,7).

            Precisamos fazer o Natal voltar a ser a festa do nascimento do Menino Jesus. Precisamos desvestir o Natal de toda caricatura neoliberal, comercial e exploradora. Os cristãos e as cristãs precisam voltar a ser discípulos do menino de Belém. Um bebê pobre, indefeso, carente, pequeno e bem humano. Precisam mudar suas concepções e suas experiências do Deus de Jesus. Melhor dizendo, os cristãos e as cristãs precisam mudar de deus, deixando de ser idólatras, adoradores de um falso deus. Nós, como o menino de Belém, precisamos aprender a amar de verdade, pois somente o amor verdadeiro revoluciona o espírito do Natal. É claro que isso não é fácil, pois, “de repente fica menos fácil cantar os antigos hinos de Natal, sem começar ao mesmo tempo a amar as pessoas, abrir-lhes o coração e responder suas perguntas com amor” (Blank, p. 195). Não podemos celebrar o Natal sem responder às grandes perguntas que a humanidade de nossos dias, especialmente o mundo dos pobres e excluídos, coloca para o cristianismo. Não há outro caminho para devolver ao Natal o seu espírito cristão senão aquele de um Deus incômodo que nos desestabiliza por completo ao se apresentar como uma criança que “toma inequivocamente partido pelos escravos e contra o sistema de dominação político-econômico” (Blank, p. 199). Um Deus que, na manjedoura de Belém, opta decididamente pelos derrotados, pelos excluídos e pelos marginalizados.