“No início não foi assim”
Filósofo, teólogo, escritor e
professor universitário
O começo de um novo ano civil é
apenas uma convenção humana e nada mais. Há bilhões de ano a Terra gira em
torno do Sol, completando uma volta em torno dele a cada 365 dias e algumas
horas. Assim sendo, o começo de um novo ano não significa nada, além do início
da recontagem de um novo período de 365 ou 366 dias. Isso não tem nenhuma
influência sobre as pessoas e sobre as suas vidas, a não ser levá-las a trocar
de calendário. Mas hoje nem precisamos fazer isso, pois os computadores e as
outras formas de tecnologias, como os celulares, se encarregam de fazer a troca.
Desta forma até mesmo aquilo que antes era uma novidade, hoje se tornou rotina.
Minutos após a virada do ano e a queima de fogos tudo volta a ser como antes;
tudo volta ao normal.
Porém, para as cristãs e os cristãos, o início de um novo ano
pode se apresentar como uma oportunidade para uma reflexão mais séria. Embora o
evento não passe de um mero início de nova recontagem de dias e da troca de
algum dígito no calendário, pode ser uma ocasião para aprofundarmos alguns
elementos de nossa fé e para a reconstrução de nossas vidas, para a nossa
conversão. Pode ser um verdadeiro sinal
dos tempos, como nos alertava Jesus (Lc 12,54-57) e como amava repetir o
papa João XXIII e o Concílio Vaticano II. Podemos aproveitar deste momento para
uma parada, para um balanço de vida, para uma avaliação ou análise da realidade
de nossa vida pessoal e comunitária.
Neste artigo quero propor que façamos esta avaliação a partir
do conceito de início, do conceito de
princípio, assim como aparece na
Bíblia. Trata-se de aproveitar da ocasião da chegada de um novo ano para uma
reflexão profunda sobre o que significa voltar ao início, voltar ao princípio,
voltar às origens.
Quando Jesus foi interpelado por alguns fariseus acerca da
prática do divórcio, ele deixou bem claro que tal prática era ilícita e
injusta. E para fundamentar a sua posição ele recorre às origens: “Moisés
permitiu o divórcio, porque vocês são duros de coração. Mas não foi assim desde o início” (Mt 19,8).
Ao dizer isso, Jesus deixa claro que há um projeto de Deus que remonta às
origens, o qual foi desvirtuado pelo egoísmo e pelos caprichos humanos. Por
essa razão é preciso voltar ao início,
ou seja, ao projeto inicial de Deus. Se não houver essa volta estaremos na
contramão, destruindo por completo o sonho do Criador para a humanidade.
Pena que as Igrejas, até hoje, tenham tratado o divórcio
apenas como uma questão de sexo e não tenham conseguido entender o que Jesus
queria propor. Para o Mestre o divórcio não era permitido por causa de
possíveis relações sexuais fora do casamento, com uma terceira pessoa, mas por
ser uma decisão unilateral e arbitrária do homem, que deixava a
mulher numa situação dramática. Dentro da cultura palestina da época, a mulher
repudiada passava a ser discriminada e odiada. Dificilmente achava um homem que
quisesse se casar com ela. E como, culturalmente, a mulher era totalmente
dependente do homem, ela ficava completamente desemparada. Só lhe restava
morrer de fome, mendigar ou prostituir-se. Diante do exposto pelos fariseus,
Jesus se posiciona contra o divórcio, não para condenar uma possível relação
sexual extraconjugal, mas para defender a igualdade e a dignidade da mulher, e
livrá-la de uma tremenda injustiça. E fundamenta a sua defesa voltando às
origens, lembrando que “o Criador, desde o início, os fez homem e mulher” (Mt
19,4).
A partir do exemplo que acabei de apresentar, podemos
aproveitar do início do novo ano para fazer uma grande avaliação de nossa vida
pessoal e de nossa vida comunitária e social. O que está de acordo com o
projeto inicial de Deus? O que precisa ser refeito, tendo presente o princípio
de tudo, a proposta original do Criador?
É bom começar pela própria vida pessoal. Em termos pessoais
poderíamos avaliar o nosso tipo de religiosidade.
Como é a minha prática religiosa? Sou daqueles que gostam de muita pompa, de
muito incenso, de muita loa, daquele tipo de culto que Deus rejeita como “coisa
nojenta”, porque desprovido de toda sensibilidade para com a justiça (Is 1,10-15)?
Ou procuro uma forma de vivência da fé que se preocupa em “acabar com as
prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos”
(Is 58,6-7)? Sinto-me incomodado com aquela Igreja que anuncia a Boa-Nova aos
pobres (Lc 4,18-19) e denuncia explicitamente a exploração praticada pelos
ricos (Tg 5,1; Lc 6,24-25)? Quero uma Igreja que não se meta em política, que
não fale de injustiças e das desigualdades sociais ou prefiro uma Igreja
comprometida e corajosa, capaz de rejeitar toda piedade transformada em “fonte
de lucro” (1Tm 6,6)?
Mas tal avaliação não deve ficar apenas no âmbito da individualidade.
É preciso que façamos juntos uma
grande avaliação de nossa vida comunitária e de nossa vida social. Poderíamos
começar, por exemplo, com uma avaliação de nossas celebrações eucarísticas, ou, como chamam algumas Igrejas, da
celebração da Ceia do Senhor. Será
que elas, como se desenvolvem atualmente, conservam aquela essência das
origens? Não são celebrações excludentes, que deixam de fora os mais pobres,
aqueles que não têm nada (1Cor 11,20-22)? Será que em nossos templos luxuosos
os mais pobres têm espaço? Ou, de repente, “sem querer, querendo”, estamos
empurrando os mais pobres e excluídos para fora de nossos templos e de nossas
assembleias (Tg 2,1-4)? Será que a celebração da Ceia do Senhor, instituída
como memorial da morte e ressurreição de Jesus (1Cor 11,23-26), e para “a
remissão dos pecados” (Mt 26,28), não está excluindo aqueles que os “donos das
Igrejas” consideram “pecadores”? Em minha comunidade, quem pode participar da
Ceia do Senhor? Com qual autoridade alguns “doutores da Lei” tentam impedir que
os tidos por eles como “pecadores” sentem-se à mesa, comam e bebam com o Mestre
(Mc 2,15-17)?
E como anda o nosso compromisso
social? Somos apenas comedores de hóstias, frequentadores de templos, de
cultos, de missas ou estamos comprometidos com a transformação de nossa
sociedade? Apenas reclamamos da corrupção ou fazemos algo para não permitir que
isso aconteça? Será que também nós, cristãos e cristãs, não somos corruptores?
Não costumamos aproveitar de certas ocasiões para sair “levando vantagem em
tudo”? Será que não estamos transformando a prática religiosa num meio para
encobrir as nossas maracutaias?
Como anda a nossa coragem profética? Estamos denunciando
aqueles que estão explorando os pobres, os trabalhadores (Tg 5,1-6)? Ou, de
repente, fazemos parte daquele grupo de gente muito piedosa que não paga o
salário justo, que não respeita o direito dos trabalhadores, da pessoa que
limpa a nossa casa, lava e passa a nossa roupa? No prédio onde moro, por
exemplo, há uma família muito católica. Vive o dia todo com a televisão
conectada nas redes católicas, rezando o terço da misericórdia e venerando como
deuses Padre Marcelo, Padre Robson, Padre Fábio de Melo etc. etc. Mas não paga o
salário justo à diarista que faz a limpeza da casa e chega mesmo a negar-lhe o
almoço, obrigando-a a ter que ir almoçar fora. Quando a diarista almoça com a
família, a comida é descontada do pagamento da diária.
E como anda a nossa participação na política? Somos políticos ou politiqueiros? Pensamos no bem comum,
no bem de todas as pessoas, ou estamos interessados em fazer politicagem, de
modo que o nosso voto traga benefícios pessoais? Como nos comportamos nas
últimas eleições? Defendemos candidatos que tinham projetos sérios e em favor
dos mais pobres e excluídos ou nos juntamos àqueles que defendiam um projeto
neoliberal excludente? Ao votar, ou até deixar de votar, pensamos nos pequenos
e indefesos ou aderimos a partidos e candidatos que “esmagam o fraco” (Am
5,11), que exploram os necessitados e são “opressores dos pobres do país” (Am
8,4-6)?
Poderíamos multiplicar as perguntas. Mas penso que aquelas
aqui apresentadas já são suficientes para que possamos entender o que significa
essa avaliação de final e de início de ano, na perspectiva bíblica daquilo que
os texto sagrados chamam de “início”. O importante é estar acordado, ou seja,
perceber que a cada momento da vida Deus nos interpela e nos convida à mudança
de vida, à conversão. E felizes aqueles “que o Senhor encontra acordados quando
chega” (Lc 12,37).