quarta-feira, 30 de julho de 2014

Conjuntura mundial


Quando as religiões matam

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Segundo dados da ONU, em 2013 existiam no mundo oitenta (80) conflitos ou guerras. Destes, setenta e dois (72), ou seja, noventa por cento (90%) tinham motivações religiosas. Ficava, assim, evidente que em pleno século XXI as religiões continuam matando. Aquilo que deveria religar as pessoas entre elas, e estas com a divindade, continua sendo a raiz de divisões, de ódio, de violência e de massacre.

            Isso é profundamente lamentável e triste. Depois de tantos milênios, de experiências dramáticas, mas também de avanços no conhecimento, de contribuições significativas das diferentes ciências, as religiões não conseguem avançar e dar uma contribuição efetiva para a paz mundial. Elas continuam paralisadas, inertes, impotentes, ou, pior, incentivando a violência e o ódio entre as pessoas e os povos.

            O que leva a isso? Por que as religiões não só não conseguem contribuir para a paz, mas chegam a estar na raiz da quase totalidade dos conflitos mundiais? Acredito que, antes de tudo, a razão disso está na incapacidade das religiões de avançarem na hermenêutica de sua história e de seus textos sagrados. Não só as pessoas simples que compõem as religiões, mas, acima de tudo, suas lideranças continuam lendo a própria história e as suas escrituras sagradas de uma forma totalmente fundamentalista. Fazem uma leitura literal dessas realidades, como se o divino, de forma mágica, tivesse determinado diretamente e oralmente o decorrer de sua história e cada palavra dos textos sagrados.

            Além disso, as próprias lideranças não têm nenhum interesse em educar as pessoas para uma correta compreensão da história da própria religião e das escrituras sagradas. Tais lideranças, na sua maioria absoluta, sabem que a história de uma religiosidade e os textos sagrados não podem ser lidos ao pé da letra. Sabem que na construção de uma história sagrada e na elaboração de um texto religioso entraram muitos fatores ideológicos, sociológicos, políticos e psicológicos. Pense-se, por exemplo, na constituição do povo de Israel a partir da história do Êxodo. Qualquer pessoa que tenha estudado, mesmo que minimamente, essa questão sabe que a formação do povo hebreu não se deu exatamente como está narrado na redação final do Primeiro Testamento. Moisés não foi um mágico que foi tocando o povo com uma varinha de condão, rachando o mar Vermelho em duas partes, furando uma rocha para sair água, fazendo codornizes pousarem suavemente na frente dos hebreus. A coisa foi muito mais complexa e muito mais humana do que divina.

Quem estudou um pouquinho da história da constituição do povo de Israel sabe que a redação final dos textos bíblicos, que falam do assunto, sofreu profunda modificação no período da monarquia, com o objetivo de justificar as mazelas praticadas pelos reis e pelo sistema dominante imposto por eles.  Assim sendo, a Bíblia judaico-cristã não pode ser lida de forma fundamentalista, mas somente com a colaboração de uma profunda e sadia hermenêutica que nos ajude a destrinchar o que se encontra por trás da constituição desses textos. Porém, as lideranças religiosas se recusam a ajudar o povo a tomar conhecimento disso, uma vez que uma interpretação mágica dos textos sagrados serve à manutenção dos status quo e para a manipulação do próprio povo. E o que foi dito aqui sobre o caso da história do povo hebreu e da religião hebraica, nas devidas proporções, vale para todas as outras. Todas as religiões, sem exceção alguma, devem ser responsabilizadas pelo sangue inocente que hoje escorre no mundo, quando se recusam a rever o modo de interpretar a própria história e as próprias escrituras sagradas.

Neste instante veio em minha mente as chocantes imagens dos corpos dilacerados, ensangüentados, carbonizados dos palestinos vítimas da truculência dos dirigentes do Estado de Israel, de modo particular os corpos de crianças, as quais nada têm a ver com o que está acontecendo. O modo de agir do estado israelense pode ser comparado aos horrores praticados contra os hebreus em vários períodos da história, especialmente pelo nazismo. Os atuais dirigentes de Israel parecem esquecer a própria história. Qualquer mente sã e humana não pode ficar indiferente diante da forma brutal com a qual este país age em relação ao povo palestino. A necessária convivência pacífica entre os povos daquela região não pode ser construída com a prática da violência brutal e desumana.

Diante do que está acontecendo no Oriente Médio e em tantas outras partes do mundo, as religiões devem ser não só interpeladas, mas profundamente questionadas e até responsabilizadas. É nosso dever dizer para todas as religiões, sem exceção, que elas precisam urgentemente educar os povos para a paz. E educar não quer dizer apenas fazer apelos genéricos, como fez recentemente o papa Francisco. Os apelos genéricos são bonitos, mas, se ficam apenas nisso, não servem para nada. As religiões, de modo particular seus dirigentes, precisam mudar suas práticas. Aquelas práticas que estimulam o ódio, a divisão, a competição e até mesmo a guerra santa. Todas as religiões precisam recuperar seus princípios éticos originais, nos quais é possível encontrar os fundamentos para a paz e a convivência pacífica entre as pessoas e os povos.

Hoje todas as pessoas aspiram à paz, mesmo que, às vezes, sejam a favor e até promovam a guerra. A paz não é só ausência de guerra, mas a presença de todos os bens indispensáveis a uma vida digna e humana e a eliminação de toda forma de preconceito e de discriminação. Diante disso, a tarefa da religião é revisitar as próprias tradições e as suas afirmações básicas para descobrir aí um grande potencial em favor da paz, de modo que isso sirva de referencial para esse anseio da humanidade.

Tarefa da religião, aqui neste caso, é voltar-se para o seu próprio patrimônio, ajudando a encontrar nele elementos que ajudem a romper com todas as formas de guerra e incentivem seus adeptos a participar ativamente dos processos de construção da paz. Existe um consenso inter-religioso acerca da potencialidade positiva e qualitativa de todas as religiões para a paz. Por isso, como já afirmara Hans Küng, não haverá paz no mundo sem paz religiosa. Para que haja paz, todas as religiões precisarão retornar de forma crítica às suas tradições não só para descobrir suas potencialidades em favor da paz, mas também para rever com humildade e transparência os momentos em que estiveram apoiando e sustentando destruições e violências.

De fato, como afirmou a Cúpula do Milênio que, em 2004, reuniu líderes representantes das grandes religiões na sede das Nações Unidas, as religiões têm contribuído para a paz no mundo, mas também têm sido usadas para criar divisões e alimentar hostilidades. Por essa razão, acreditam os líderes religiosos reunidos na Cúpula Mundial, as religiões precisam ter uma atitude de reverência à vida, à liberdade, e à justiça. E, através de um entendimento mútuo, do diálogo, procurarem se unir para erradicar as situações de miséria, pobreza e exclusão e, no compromisso com um desenvolvimento sustentável, garantir um mundo saudável para as gerações presentes e futuras.

E nós, com nossa reflexão crítica, podemos ajudar as religiões a descobrir as reais possibilidades de estabelecer um processo comum onde a experiência religiosa, a vivência da fé, a espiritualidade entendida como cultivo da relação com o divino, se tornam forças vivas para a construção da paz. Se silenciarmos, se não questionarmos as religiões, se não insistirmos para que mudem de postura, nos tornaremos cúmplices de todo sangue inocente que escorre no mundo, como é o caso do que no momento está sendo derramado no chão da Palestina. Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver se não houver um ethos global, uma ética para o mundo inteiro” (Hans KÜNG).

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