Quando
as religiões matam
José
Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo,
teólogo, escritor e professor universitário
Segundo
dados da ONU, em 2013 existiam no mundo oitenta (80) conflitos ou guerras.
Destes, setenta e dois (72), ou seja, noventa por cento (90%) tinham motivações
religiosas. Ficava, assim, evidente que em pleno século XXI as religiões
continuam matando. Aquilo que deveria religar
as pessoas entre elas, e estas com a divindade, continua sendo a raiz de
divisões, de ódio, de violência e de massacre.
Isso
é profundamente lamentável e triste. Depois de tantos milênios, de experiências
dramáticas, mas também de avanços no conhecimento, de contribuições
significativas das diferentes ciências, as religiões não conseguem avançar e
dar uma contribuição efetiva para a paz mundial. Elas continuam paralisadas,
inertes, impotentes, ou, pior, incentivando a violência e o ódio entre as
pessoas e os povos.
O
que leva a isso? Por que as religiões não só não conseguem contribuir para a
paz, mas chegam a estar na raiz da quase totalidade dos conflitos mundiais? Acredito
que, antes de tudo, a razão disso está na incapacidade das religiões de
avançarem na hermenêutica de sua
história e de seus textos sagrados. Não só as pessoas simples que compõem as
religiões, mas, acima de tudo, suas lideranças continuam lendo a própria história
e as suas escrituras sagradas de uma forma totalmente fundamentalista. Fazem
uma leitura literal dessas realidades, como se o divino, de forma mágica,
tivesse determinado diretamente e oralmente o decorrer de sua história e cada
palavra dos textos sagrados.
Além
disso, as próprias lideranças não têm nenhum interesse em educar as pessoas
para uma correta compreensão da história da própria religião e das escrituras
sagradas. Tais lideranças, na sua maioria absoluta, sabem que a história de uma
religiosidade e os textos sagrados não podem ser lidos ao pé da letra. Sabem
que na construção de uma história sagrada e na elaboração de um texto religioso
entraram muitos fatores ideológicos, sociológicos, políticos e psicológicos.
Pense-se, por exemplo, na constituição do povo de Israel a partir da história
do Êxodo. Qualquer pessoa que tenha estudado, mesmo que minimamente, essa
questão sabe que a formação do povo hebreu não se deu exatamente como está
narrado na redação final do Primeiro Testamento. Moisés não foi um mágico que
foi tocando o povo com uma varinha de condão, rachando o mar Vermelho em duas
partes, furando uma rocha para sair água, fazendo codornizes pousarem
suavemente na frente dos hebreus. A coisa foi muito mais complexa e muito mais humana do que divina.
Quem estudou um pouquinho da
história da constituição do povo de Israel sabe que a redação final dos textos
bíblicos, que falam do assunto, sofreu profunda modificação no período da
monarquia, com o objetivo de justificar as mazelas praticadas pelos reis e pelo
sistema dominante imposto por eles. Assim
sendo, a Bíblia judaico-cristã não pode ser lida de forma fundamentalista, mas
somente com a colaboração de uma profunda e sadia hermenêutica que nos ajude a
destrinchar o que se encontra por trás da constituição desses textos. Porém, as
lideranças religiosas se recusam a ajudar o povo a tomar conhecimento disso,
uma vez que uma interpretação mágica dos textos sagrados serve à manutenção dos
status quo e para a manipulação do próprio povo. E o que foi dito aqui sobre o
caso da história do povo hebreu e da religião hebraica, nas devidas proporções,
vale para todas as outras. Todas as religiões, sem exceção alguma, devem ser
responsabilizadas pelo sangue inocente que hoje escorre no mundo, quando se
recusam a rever o modo de interpretar a própria história e as próprias
escrituras sagradas.
Neste instante veio em minha
mente as chocantes imagens dos corpos dilacerados, ensangüentados, carbonizados
dos palestinos vítimas da truculência dos dirigentes do Estado de Israel, de
modo particular os corpos de crianças, as quais nada têm a ver com o que está
acontecendo. O modo de agir do estado israelense pode ser comparado aos
horrores praticados contra os hebreus em vários períodos da história,
especialmente pelo nazismo. Os atuais dirigentes de Israel parecem esquecer a
própria história. Qualquer mente sã e humana não pode ficar indiferente diante
da forma brutal com a qual este país age em relação ao povo palestino. A
necessária convivência pacífica entre os povos daquela região não pode ser
construída com a prática da violência brutal e desumana.
Diante do que está
acontecendo no Oriente Médio e em tantas outras partes do mundo, as religiões
devem ser não só interpeladas, mas profundamente questionadas e até
responsabilizadas. É nosso dever dizer para todas as religiões, sem exceção,
que elas precisam urgentemente educar os povos para a paz. E educar não quer
dizer apenas fazer apelos genéricos, como fez recentemente o papa Francisco. Os
apelos genéricos são bonitos, mas, se ficam apenas nisso, não servem para nada.
As religiões, de modo particular seus dirigentes, precisam mudar suas práticas.
Aquelas práticas que estimulam o ódio, a divisão, a competição e até mesmo a
guerra santa. Todas as religiões precisam recuperar seus princípios éticos
originais, nos quais é possível encontrar os fundamentos para a paz e a
convivência pacífica entre as pessoas e os povos.
Hoje
todas as pessoas aspiram à paz, mesmo que, às vezes, sejam a favor e até
promovam a guerra. A paz não é só
ausência de guerra, mas a presença de todos os bens indispensáveis a uma vida
digna e humana e a eliminação de toda forma de preconceito e de discriminação.
Diante disso, a tarefa da religião é revisitar as próprias tradições e as suas afirmações
básicas para descobrir aí um grande potencial em favor da paz, de modo que isso
sirva de referencial para esse anseio da humanidade.
Tarefa
da religião, aqui neste caso, é voltar-se para o seu próprio patrimônio, ajudando
a encontrar nele elementos que ajudem a romper com todas as formas de guerra e
incentivem seus adeptos a participar ativamente dos processos de construção da
paz. Existe um consenso inter-religioso acerca da potencialidade positiva e
qualitativa de todas as religiões para a paz. Por isso, como já afirmara Hans
Küng, não haverá paz no mundo sem paz religiosa. Para que haja paz, todas as
religiões precisarão retornar de forma crítica às suas tradições não só para
descobrir suas potencialidades em favor da paz, mas também para rever com
humildade e transparência os momentos em que estiveram apoiando e sustentando
destruições e violências.
De
fato, como afirmou a Cúpula do Milênio que, em 2004, reuniu líderes
representantes das grandes religiões na sede das Nações Unidas, as religiões
têm contribuído para a paz no mundo, mas também têm sido usadas para criar
divisões e alimentar hostilidades. Por essa razão, acreditam os líderes
religiosos reunidos na Cúpula Mundial, as religiões precisam ter uma atitude de
reverência à vida, à liberdade, e à justiça. E, através de um entendimento
mútuo, do diálogo, procurarem se unir para erradicar as situações de miséria,
pobreza e exclusão e, no compromisso com um desenvolvimento sustentável,
garantir um mundo saudável para as gerações presentes e futuras.
E
nós, com nossa reflexão crítica, podemos ajudar as religiões a descobrir as
reais possibilidades de estabelecer um processo comum onde a experiência
religiosa, a vivência da fé, a espiritualidade entendida como cultivo da
relação com o divino, se tornam forças vivas para a construção da paz. Se
silenciarmos, se não questionarmos as religiões, se não insistirmos para que
mudem de postura, nos tornaremos cúmplices de todo sangue inocente que escorre
no mundo, como é o caso do que no momento está sendo derramado no chão da
Palestina. “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as
religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as
religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões
éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver se não houver um ethos global,
uma ética para o mundo inteiro” (Hans KÜNG).