Por
que a Copa está acontecendo?
José
Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo,
teólogo, escritor e professor universitário
Há
um ano o Brasil foi tomado por uma invasão de manifestações. Pelo ritmo da
coisa, parecia que iam acontecer grandes transformações no país. Entre essas
transformações, o que parecia mais evidente era que não aconteceria o
Campeonato Mundial de Futebol em nosso país. O refrão “não vai ter Copa” passou
a ser repetido durante vários meses. Porém, na medida em que se aproximava a
realização da Copa, o refrão foi diminuindo. Aos poucos o verde-amarelo foi
tomando conta das ruas e o refrão passou a ser considerado “coisa do passado”,
praticamente ignorado pela quase totalidade da população brasileira.
A
Copa veio, teve início, está acontecendo a todo vapor, os estádios estão
lotados, as ruas enfeitadas, os gringos satisfeitos com a acolhida dos
brasileiros. E o que há um ano parecia profecia agourenta, hoje foi sepultado
pela maré das cores da nossa bandeira espalhadas por todos os cantos do Brasil.
As manifestações estão praticamente vazias. Somente algumas dezenas ou
pouquíssimas centenas de pessoas ainda arriscam sair às ruas para gritar alguns
chavões que quase ninguém escuta.
Tenho
procurado estudar a razão de tudo isso. Por que certos brasileiros, de repente,
parecem acordar de um sono profundo, fazem muito barulho e depois desaparecem
de cena, como se nada tivesse acontecido? E isso não aconteceu somente no ano
passado. É algo comum à nossa cultura. Quem não se lembra dos “caras pintadas”
que saíram às ruas para exigir a renúncia de Collor de Mello? Passando aquele
momento eles entraram em letargia para só acordar mais de vinte anos depois.
Parece-me que esse fenômeno tem explicações.
A
primeira e principal delas, a meu ver, é que esse tipo de manifestação é
promovido e teleguiado pelas elites brasileiras que, usando dos recursos
públicos que estão em sua mão (como, por exemplo, a grande mídia), insuflam as
pessoas. Mas, como não têm propostas concretas e verdadeiramente voltadas para
as reais necessidades do povo, terminam por perder a credibilidade. As elites
tentam com essas manifestações criar um clima de insatisfação, visando
desestabilizar o momento político e tirar vantagens disso. Mas quando percebem
que “o feitiço pode se voltar contra o feiticeiro”, elas mesmas se encarregam
de jogar uma ducha fria sobre os fatos. E como lamentavelmente mais de dois
terços da população brasileira é formado de analfabetos funcionais, esse contingente
de pessoas termina por ser massa de manobra das elites e deixando-se
influenciar pelos jargões e refrões. Porém, mesmo sendo analfabetas funcionais,
aos poucos vão se dando conta de que tudo não passa de fumaça que, aos poucos,
se desmancha no ar. E, de repente, resolvem ficar em casa, vestir-se de
verde-amarelo e torcer pela seleção canarinho.
A
segunda explicação está na burrice da atual
esquerda brasileira, incapaz, incompetente, desunida, arrogante e ególatra.
Quem me fez perceber essa realidade nua e crua foi Rubem Alves. No seu livro Variações sobre o prazer (São Paulo:
Planeta, 2013) Alves, muito perspicazmente, faz uma relação entre consciência crítica e erótica. Diz, sem meios-termos, que é a
erótica que julga as coisas “em função do prazer que elas lhe causam” (p. 64). E,
refazendo-se a Nietzsche, afirma que a esquerda, e no nosso caso a esquerda
brasileira, como o espírito alemão criticado pelo filósofo, se encontra com os “intestinos
perturbados”, sofre de uma tremenda indigestão:
“a esquerda se parece com o espírito alemão, identifica consciência crítica com
intestinos perturbados. A consciência crítica da esquerda é sempre a
consciência infeliz: padece de indigestão crônica” (p. 64).
Continuando
sua crítica, Alves relembra que as pessoas são corpo. E, como tais, gostam de
coisas gostosas e rejeitam as que não são gostosas. E aprofundando ainda mais a
sua crítica, o autor dispara sem dó e piedade, dizendo que “toda a esquerda é
cartesiana, acredita nos poderes da razão. Argumenta com ideias claras e
distintas. Por oposição, são os nazismos, os fascismos e a propaganda que se
movem no mundo subterrâneo dos sentimentos sem nome, do irracional. A esquerda
usa, como armas contra o irracionalismo, a transparência ideológica e as ideias
claras e distintas, que moram na consciência. A esquerda gosta de luzes. Ela
ignora que as ideias que moram nas luzes não conseguem se comunicar com o corpo”
(p. 77).
A
crítica de Alves dói bastante, mas é a pura verdade. Até hoje, a nossa esquerda
não conseguiu se desvencilhar de um linguajar e de um método que ignora por
completo a realidade corporal do ser humano. Continua falando e agindo como se
o mundo tivesse parado na segunda metade do século passado. Enquanto a direitona consegue sacudir os corpos
humanos e envolvê-los numa dança erótica que visa atingir suas intenções e objetivos,
a esquerda burra continua pensando como Descartes, como se o ser humano não
tivesse corpo e fosse apenas um ser pensante abstrato. Alves conclui: “É
preciso entender que a batalha não se trava entre consciência e inconsciência,
razão e não razão, entre a cabeça e o corpo. A batalha se trava entre deuses e demônios,
ambos habitantes do corpo e, como tais, criaturas do inconsciente” (p. 78).
E
se alguém ainda tem dúvida disso basta olhar a situação da atual esquerda
brasileira: totalmente dividida em meros frangalhos, disputando entre si
míseros pedaços de poder, incapaz de se unir para derrotar o inimigo comum,
enquanto a direita, disfarçada de democracia e de socialismo, deita e rola em
cima de tudo e de todos. Mais uma vez aquela que seria a “autêntica esquerda”
chegará às eleições completamente dividida e obterá resultados inexpressivos.
Veremos que em seus breves programas políticos se limitarão a repetir velhos
refrões e chavões contra o capitalismo, sem apresentar propostas concretas para
pessoas que, além de pensar, hoje têm necessidades básicas que lhe são
sinaladas por um corpo vivo. A essa esquerda se junta outra esquerda burra,
aquela eclesiástica, que influenciada
pelo maniqueísmo é incapaz de ajudar a esquerda política a se dar conta de que
o mundo mudou. Caberia à esquerda eclesiástica, a partir dos mais elementares
ensinamentos evangélicos, lembrar aos demais esquerdistas que, no mundo real,
anjos e demônios estão misturados. Que essa coisa de fazer política sem querer “sujar
as mãos”, ou seja, sem se unir a outras forças democráticas menos esquerdistas
é pura ilusão e não leva a lugar nenhum.
Assim,
por exemplo, ao invés de se associar à “paixão brasileira”, no momento
representado pelo futebol, insiste em negar o óbvio, acreditando que o povo
brasileiro vai abrir os olhos e rejeitar a Copa Mundial de Futebol. Ao invés de
se apoderar, positivamente, daquilo que está no sangue dos brasileiros, e
promover uma reflexão gostosa que causa prazer, a esquerda pretende burramente
impor aos brasileiros que não vibrem com um evento mundial que está acontecendo
no país e mobiliza a metade da população do planeta. Ao invés de reconhecer as
conquistas, as melhorias, os avanços obtidos até agora, mesmo por quem não a representa
totalmente, a esquerda insiste em negar que o país cresceu e superou muitos
obstáculos e situações críticas. Desta forma termina fazendo o jogo das elites
que, com simples encenações midiáticas, manipula as massas e impede um avanço
mais significativo em direção a “outro mundo possível”.
Continuando
dessa forma a esquerda jamais conseguirá mobilizar as pessoas e contribuir
efetivamente para uma mudança na direção daquele mundo justo com o qual tanto
sonhamos. É hora de uma grande revisão, de sair da ilusão e ser mais realista.
Os nossos métodos de esquerda utilizados no passado tiveram seu valor para
aqueles tempos. E disso não devemos ter vergonha. Mas o mundo mudou. Talvez
esteja na hora da esquerda aprender com o esquerdista Paulo Freire, que dizia: “Desaprender
os saberes acumulados a fim de aprender a sabedoria não dita do corpo”. Mais
corpo nas ideias, pois, diz ainda Alves, o “corpo sabe ensinar, naturalmente,
da mesma forma que a centopeia sabe andar sem tropeçar” (p. 78).