quinta-feira, 26 de junho de 2014

Momento atual


Por que a Copa está acontecendo?

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Há um ano o Brasil foi tomado por uma invasão de manifestações. Pelo ritmo da coisa, parecia que iam acontecer grandes transformações no país. Entre essas transformações, o que parecia mais evidente era que não aconteceria o Campeonato Mundial de Futebol em nosso país. O refrão “não vai ter Copa” passou a ser repetido durante vários meses. Porém, na medida em que se aproximava a realização da Copa, o refrão foi diminuindo. Aos poucos o verde-amarelo foi tomando conta das ruas e o refrão passou a ser considerado “coisa do passado”, praticamente ignorado pela quase totalidade da população brasileira.

            A Copa veio, teve início, está acontecendo a todo vapor, os estádios estão lotados, as ruas enfeitadas, os gringos satisfeitos com a acolhida dos brasileiros. E o que há um ano parecia profecia agourenta, hoje foi sepultado pela maré das cores da nossa bandeira espalhadas por todos os cantos do Brasil. As manifestações estão praticamente vazias. Somente algumas dezenas ou pouquíssimas centenas de pessoas ainda arriscam sair às ruas para gritar alguns chavões que quase ninguém escuta.

            Tenho procurado estudar a razão de tudo isso. Por que certos brasileiros, de repente, parecem acordar de um sono profundo, fazem muito barulho e depois desaparecem de cena, como se nada tivesse acontecido? E isso não aconteceu somente no ano passado. É algo comum à nossa cultura. Quem não se lembra dos “caras pintadas” que saíram às ruas para exigir a renúncia de Collor de Mello? Passando aquele momento eles entraram em letargia para só acordar mais de vinte anos depois. Parece-me que esse fenômeno tem explicações.

            A primeira e principal delas, a meu ver, é que esse tipo de manifestação é promovido e teleguiado pelas elites brasileiras que, usando dos recursos públicos que estão em sua mão (como, por exemplo, a grande mídia), insuflam as pessoas. Mas, como não têm propostas concretas e verdadeiramente voltadas para as reais necessidades do povo, terminam por perder a credibilidade. As elites tentam com essas manifestações criar um clima de insatisfação, visando desestabilizar o momento político e tirar vantagens disso. Mas quando percebem que “o feitiço pode se voltar contra o feiticeiro”, elas mesmas se encarregam de jogar uma ducha fria sobre os fatos. E como lamentavelmente mais de dois terços da população brasileira é formado de analfabetos funcionais, esse contingente de pessoas termina por ser massa de manobra das elites e deixando-se influenciar pelos jargões e refrões. Porém, mesmo sendo analfabetas funcionais, aos poucos vão se dando conta de que tudo não passa de fumaça que, aos poucos, se desmancha no ar. E, de repente, resolvem ficar em casa, vestir-se de verde-amarelo e torcer pela seleção canarinho.

            A segunda explicação está na burrice da atual esquerda brasileira, incapaz, incompetente, desunida, arrogante e ególatra. Quem me fez perceber essa realidade nua e crua foi Rubem Alves. No seu livro Variações sobre o prazer (São Paulo: Planeta, 2013) Alves, muito perspicazmente, faz uma relação entre consciência crítica e erótica. Diz, sem meios-termos, que é a erótica que julga as coisas “em função do prazer que elas lhe causam” (p. 64). E, refazendo-se a Nietzsche, afirma que a esquerda, e no nosso caso a esquerda brasileira, como o espírito alemão criticado pelo filósofo, se encontra com os “intestinos perturbados”, sofre de uma tremenda indigestão: “a esquerda se parece com o espírito alemão, identifica consciência crítica com intestinos perturbados. A consciência crítica da esquerda é sempre a consciência infeliz: padece de indigestão crônica” (p. 64).

            Continuando sua crítica, Alves relembra que as pessoas são corpo. E, como tais, gostam de coisas gostosas e rejeitam as que não são gostosas. E aprofundando ainda mais a sua crítica, o autor dispara sem dó e piedade, dizendo que “toda a esquerda é cartesiana, acredita nos poderes da razão. Argumenta com ideias claras e distintas. Por oposição, são os nazismos, os fascismos e a propaganda que se movem no mundo subterrâneo dos sentimentos sem nome, do irracional. A esquerda usa, como armas contra o irracionalismo, a transparência ideológica e as ideias claras e distintas, que moram na consciência. A esquerda gosta de luzes. Ela ignora que as ideias que moram nas luzes não conseguem se comunicar com o corpo” (p. 77).

            A crítica de Alves dói bastante, mas é a pura verdade. Até hoje, a nossa esquerda não conseguiu se desvencilhar de um linguajar e de um método que ignora por completo a realidade corporal do ser humano. Continua falando e agindo como se o mundo tivesse parado na segunda metade do século passado. Enquanto a direitona consegue sacudir os corpos humanos e envolvê-los numa dança erótica que visa atingir suas intenções e objetivos, a esquerda burra continua pensando como Descartes, como se o ser humano não tivesse corpo e fosse apenas um ser pensante abstrato. Alves conclui: “É preciso entender que a batalha não se trava entre consciência e inconsciência, razão e não razão, entre a cabeça e o corpo. A batalha se trava entre deuses e demônios, ambos habitantes do corpo e, como tais, criaturas do inconsciente” (p. 78).

            E se alguém ainda tem dúvida disso basta olhar a situação da atual esquerda brasileira: totalmente dividida em meros frangalhos, disputando entre si míseros pedaços de poder, incapaz de se unir para derrotar o inimigo comum, enquanto a direita, disfarçada de democracia e de socialismo, deita e rola em cima de tudo e de todos. Mais uma vez aquela que seria a “autêntica esquerda” chegará às eleições completamente dividida e obterá resultados inexpressivos. Veremos que em seus breves programas políticos se limitarão a repetir velhos refrões e chavões contra o capitalismo, sem apresentar propostas concretas para pessoas que, além de pensar, hoje têm necessidades básicas que lhe são sinaladas por um corpo vivo. A essa esquerda se junta outra esquerda burra, aquela eclesiástica, que influenciada pelo maniqueísmo é incapaz de ajudar a esquerda política a se dar conta de que o mundo mudou. Caberia à esquerda eclesiástica, a partir dos mais elementares ensinamentos evangélicos, lembrar aos demais esquerdistas que, no mundo real, anjos e demônios estão misturados. Que essa coisa de fazer política sem querer “sujar as mãos”, ou seja, sem se unir a outras forças democráticas menos esquerdistas é pura ilusão e não leva a lugar nenhum.

            Assim, por exemplo, ao invés de se associar à “paixão brasileira”, no momento representado pelo futebol, insiste em negar o óbvio, acreditando que o povo brasileiro vai abrir os olhos e rejeitar a Copa Mundial de Futebol. Ao invés de se apoderar, positivamente, daquilo que está no sangue dos brasileiros, e promover uma reflexão gostosa que causa prazer, a esquerda pretende burramente impor aos brasileiros que não vibrem com um evento mundial que está acontecendo no país e mobiliza a metade da população do planeta. Ao invés de reconhecer as conquistas, as melhorias, os avanços obtidos até agora, mesmo por quem não a representa totalmente, a esquerda insiste em negar que o país cresceu e superou muitos obstáculos e situações críticas. Desta forma termina fazendo o jogo das elites que, com simples encenações midiáticas, manipula as massas e impede um avanço mais significativo em direção a “outro mundo possível”.

            Continuando dessa forma a esquerda jamais conseguirá mobilizar as pessoas e contribuir efetivamente para uma mudança na direção daquele mundo justo com o qual tanto sonhamos. É hora de uma grande revisão, de sair da ilusão e ser mais realista. Os nossos métodos de esquerda utilizados no passado tiveram seu valor para aqueles tempos. E disso não devemos ter vergonha. Mas o mundo mudou. Talvez esteja na hora da esquerda aprender com o esquerdista Paulo Freire, que dizia: “Desaprender os saberes acumulados a fim de aprender a sabedoria não dita do corpo”. Mais corpo nas ideias, pois, diz ainda Alves, o “corpo sabe ensinar, naturalmente, da mesma forma que a centopeia sabe andar sem tropeçar” (p. 78).

quinta-feira, 12 de junho de 2014


Nova tentativa de assassinato da Teologia da Libertação

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

                A Teologia da Libertação (TdL) foi gestada na 2ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (CELAM), realizada em 1968 em Medellín, na Colômbia. Naquela ocasião os bispos do nosso continente tentaram aplicar o Concílio Vaticano II à realidade que marcava a vida dos nossos povos e dos nossos países. Logo depois, a TdL foi sistematizada pela obra de Gustavo Gutiérrez e de outros teólogos, os quais tentaram fazer uma reflexão teológica que desenvolvesse a intuição de Medellín, que era centrar a sua atenção sobre o ser humano do continente, frustrado em suas legítimas aspirações, devido às enormes injustiças e à opressão que assolavam os diversos países.

                Depois de alguns anos de aceitação e de esforço para traduzir na prática as suas intuições, a TdL passou a ser incompreendida e perseguida. Isso aconteceu de modo particular a partir de 1978, com o início do pontificado do polaco Wojtyla. Este papa, assessorado por uma Cúria ultraconservadora, foi podando sistematicamente e cruamente todas as iniciativas da Igreja da Libertação. Censurou e até cassou alguns dos mais renomados teólogos da libertação, nomeou bispos tradicionalistas e perseguiu aqueles que tinham desenvolvido em suas dioceses uma pastoral da libertação. Esta política continuou no pontificado do alemão Ratzinger. Com a chegada do papa Francisco houve uma diminuição da perseguição, mas ainda existem resquícios de tentativas de assassinato da TdL.

                A mais recente tentativa de assassinato aconteceu poucos dias atrás. Segundo informação do site do Instituto Humanitas da Unisinos, os membros da presidência do CELAM, em sua visita anual à Santa Sé, afirmaram em entrevista que a TdL está “muito velha, se não é que já está morta”. Embora tenha reconhecido os esforços dos teólogos da libertação, o presidente do CELAM, dom Carlos Aguiar Retes, disse que depois da TdL “temos uma reflexão teológica mais sapiencial” que abandonou a luta de classes e a confrontação entre ricos e pobres. Com estas afirmações o ilustre prelado, presidente do CELAM, tentou desacreditar a TdL: ela está velha ou morta e não é uma teologia “sapiencial”.

                Os membros da presidência do CELAM, resquícios de um episcopado alinhado com a Cúria Romana de Wojtyla e Ratzinger, ainda tentam sufocar uma teologia original, autêntica e que incomodou muita gente, especialmente os empacotados de roxo e os purpurados que frequentavam as luxuosas casas e as cozinhas das “raposas” (Lc 13,32) que patrocinaram a opressão, a injustiça e a miséria em nosso continente.

                Mas um simples olhar mostra que a TdL não morreu e nem envelheceu. Ela continua nova e vigorosa, antes de tudo no legado que nos foi deixado por pastores como Oscar Romero, Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Angélico Sândalo Bernardino, só para citar alguns nomes. O legado desses pastores da libertação ultrapassou as fronteiras da própria Igreja Católica Romana e as fronteiras do tempo. Hoje, no mundo, centenas de milhares de mulheres e homens continuam a testemunhar a sua fé, graças ao testemunho desses pastores da libertação. Milhares de iniciativas surgiram por conta da ação pastoral desses bispos católicos e continuam existindo e agindo, apesar dos ventos que sopram em sentido contrário.

                Também alguns bispos e pastores de outras Igrejas irmãs, como a Igreja de Confissão Luterana, a Igreja Anglicana, a Igreja Metodista, a Igreja Presbiteriana, descobriram na TdL o caminho para uma ação mais incisiva em nosso continente e no mundo. Não posso deixar de lembrar a figura de dois representantes destas Igrejas: o pastor presbiteriano Jaime Wright e o pastor luterano Milton Schwantes, verdadeiros ícones das Igrejas da Reforma no Brasil e que encontraram na TdL o caminho para a evangelização. Ainda hoje homens e mulheres dessas Igrejas, teólogas e teólogos, pastoras e pastores desenvolvem suas atividades de anúncio da Boa-Notícia tendo como ponto de apoio a TdL. Sem falar depois nas inúmeras iniciativas ecumênicas ainda hoje em pleno vigor e que tiveram o seu berço na TdL. Basta lembrar, por exemplo, o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) com a sua vasta produção de subsídios para a animação bíblica popular. Por fim, cabe lembrar também a maravilhosa experiência das Comunidades Eclesiais de Base, expressão máxima de uma Igreja que bebe na fonte da libertação. Alguns tentam hoje minimizar essas comunidades, mas elas continuam aí, existindo como jeito novo de ser Igreja. No último Intereclesial, realizado no início deste ano em Juazeiro do Norte (CE), a terra do Padim Ciço, elas mostraram a sua força e a sua pujança.

                No campo da reflexão teológica, depois da chegada do papa Francisco, houve uma retomada da TdL, até então sufocada e proibida pelos monsenhores curiais. O pai da TdL, Gustavo Gutiérrez, publicou recentemente com o Cardeal Gerhard Ludwig Müller , atual Prefeito da Congregação Vaticana para a Doutrina da Fé, um texto no qual retomam os principais elementos dessa teologia. O livro, originalmente escrito em alemão, foi traduzido para o português e publicado no início deste ano por Edições Paulinas, com o título: Ao lado dos pobres. Teologia da Libertação. Muito significativa a intervenção do Cardeal Müller, especialmente no capítulo quatro do livro, no qual o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé fala das controvérsias em torno da TdL. Antes de tudo o Cardeal Müller reconhece a sua legitimidade, afirma a sua necessidade para a Igreja e diz tratar-se de uma autêntica teologia. Lembra que a teologia latino-americana ajudou a corrigir a “clássica doutrina social da Igreja”, construída a partir de um dualismo entre mundo natural e mundo sobrenatural.

O Cardeal Müller reconhece também a legitimidade da mediação socioanalítica, lembrando inclusive que esse tipo de recurso não é novidade na teologia católica. Grandes teólogos, como Tomás de Aquino, já tinham utilizado tal método, uma vez que é impossível fazer teologia abstrata, ou seja, sem partir da realidade. O Cardeal chega mesmo a reconhecer a importância da mediação da análise marxista e até da referência à luta de classes, lembrando-nos que o marxismo não deve ser confundido com o totalitarismo ideológico leninista e stalinista. Aliás, diga-se de passagem, foram os teóricos do capitalismo, que não conheciam o pensamento marxista, que confundiram Marx com Lênin e Stalin. Para o Cardeal Müller, ao mencionar a luta de classes, a TdL não entende desenvolver uma guerra de eliminação de uma classe, mas apenas lembrar que “a história não se desenvolve a partir do desenvolvimento harmônico de suas virtualidades, mas mediante o antagonismo de princípios e de interesses opostos”. A menção à luta de classes é um convite a participar “na luta da graça contra o pecado e, concretamente, também, de uma encarnação da salvação nas estruturas sociais promotoras da vida e uma superação do pecado e de sua objetivação em sistemas exploradores”. Isso porque “a graça e o pecado não existem simplesmente de modo puramente idealista e espiritualista em si, mas sempre unicamente junto com sua encarnação e materialização nas condições de vida humanas”.

A fala da presidência do CELAM tem um lado positivo: mostra que no momento, em Roma, há um clima de distensão, de mais respeito e de mais diálogo. Até alguns meses atrás seria impensável que bispos discordassem abertamente do pensamento do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Tal discordância era punida severamente, mesmo que fosse apenas com o puro isolamento e descrédito dos interessados. A presidência do CELAM ousou discordar do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que, como vimos, tem outro olhar sobre a TdL. E isso é positivo.

Porém, é lamentável que tenham tentado, a partir de Roma, decretar a caduquice e a morte da TdL; tenham efetivado mais uma tentativa de assassinato da teologia latino-americana. É lamentável porque foram essas tentativas que fizeram a Igreja Católica regredir em nosso continente, perdendo a credibilidade e um número cada vez mais expressivo de fiéis, como têm apontado as recentes pesquisas, mesmo que os eclesiásticos queiram minimizar esses dados. Na Europa, onde a TdL nunca foi admitida, o catolicismo agoniza, a Igreja envelhece rapidamente, tornando-se cada dia mais feminil e senil. Os prelados do CELAM deveriam aprender com o europeu Cardeal Müller, o qual afirma no texto acima mencionado que a Igreja, tanto no nosso continente como no mundo inteiro, “não pode renunciar à continuação e ao uso da Teologia da Libertação”, pois “a pretensão metodológica da Teologia da Libertação, de empregar uma práxis transformadora, outra coisa não é senão a nova formulação do evento original da teologia em absoluto”. Por isso, no “contexto regional e para a comunicação teológica mundo afora, a Teologia da Libertação é imprescindível” (p. 109).