O
tempo sagrado do lazer e do descanso
Filósofo,
teólogo, escritor e professor universitário
No hemisfério sul de nosso
planeta o fim e o início do ano civil costumam coincidir com o período de férias em muitos setores da sociedade.
Aqui no Brasil, além das escolas, há férias para muitos funcionários públicos e
até para diversos seguimentos de empresas e instituições particulares.
Costumamos afirmar que o nosso país só volta ao normal depois do Carnaval.
Geralmente há muito preconceito contra as férias e contra o
lazer. Não são poucos os que acreditam que nós brasileiros temos feriados em
excesso e que gostamos da boa vida. Há inclusive fortes preconceitos contra
certas regiões do Brasil, tidas como lugares onde o povo não gosta de
trabalhar. Sou nordestino e baiano e não poucas vezes tenho escutado pessoas
afirmando de forma descabida e mentirosa que somos um povo de preguiçosos.
Embora não faltem estudos acadêmicos, inclusive pesquisas e teses de doutorado,
provando o contrário, prevalece, infelizmente, o preconceito. As pessoas
preconceituosas ignoram que foram os países mais avançados aqueles que mais
lutaram por mais espaço de tempo para o lazer e o descanso, ou seja, pela
redução da jornada de trabalho. Apesar disso, nós brasileiros ainda achamos que
somos mais preguiçosos do que os países tidos como desenvolvidos.
Tal concepção tem uma
conotação cultural. As elites
brasileiras – estas, sim, bastante preguiçosas e exploradoras dos trabalhadores
– inventaram esta história desde os tempos da escravidão dos indígenas e dos
africanos. O objetivo era justificar a exploração dos escravos, os quais foram
submetidos a trabalhos forçados e a jornadas extenuantes. Depois da abolição
legal da escravidão o preconceito continuou. Os trabalhadores explorados como
mão-de-obra barata eram e são ainda apresentados como pessoas que não querem
trabalhar. Assim pode-se justificar, com uma desculpa imbecil, a forma
massacrante com a qual, ainda hoje, as trabalhadoras e os trabalhadores são
submetidos a formas de trabalho desumanas e antiéticas.
O cristianismo, de modo particular
a Igreja Católica Romana, contribuiu muito para que esse preconceito fosse
reforçado. Abençoando as elites exploradoras dos pobres e trabalhadores, esse
tipo de cristianismo, especialmente aqui no hemisfério sul, apresentou o
trabalho como uma obrigação da qual não se pode fugir. Numa interpretação
fundamentalista e ideológica da Bíblia, esta forma de cristianismo via no
trabalho um castigo pelo pecado original.
O ser humano, depois de pecar, “se alimentará com fadiga” (Gn 3,17) e “comerá
seu pão com o suor do seu rosto, até que volte para a terra de onde foi tirado”
(Gn 3,19). Desta forma, submeter ontem o escravo, e hoje o trabalhador, a uma
atividade extenuante deve ser visto como normal, pois afinal de contas eles
estão descontando seus pecados. Assim esse cristianismo aberrante legitimava –
e certamente ainda legitima – a exploração das trabalhadoras e dos
trabalhadores.
Porém, se olharmos
atentamente para alguns textos da Sagrada Escritura vamos perceber que isso não
é verdade. O próprio Deus bíblico é um Deus que busca o prazer do lazer e do
descanso. Já nas primeiras páginas da Bíblia encontramos um Deus que “curte” a ociosidade, o prazer de não fazer nada
em certos momentos (Gn 2,1-3). Aliás, diga-se claramente, este texto foi
escrito depois da experiência dolorosa do exílio, quando o povo hebreu foi
submetido a trabalhos forçados, sem direito a nenhum tipo de descanso. Depois
disso, o direito ao descanso semanal, tanto para homens e mulheres, como para
os animais, passa a fazer parte da legislação judaica e é visto como uma lei
divina (Êx 20,8-11). E para que o povo não se esquecesse desse detalhe a
literatura deuteronomista vai trazer a memória da escravidão na terra do Egito
(Dt 5,12-15). Negar o direito ao descanso semanal é voltar aos tempos da
escravidão egípcia; é tornar-se escravo do faraó.
É
claro que para aceitarmos esta perspectiva temos que excluir a função meramente
econômica da vida, ou seja, viver somente
em função do consumo e da acumulação de bens. Temos que entender que Deus, ao
criar o mundo, fez muitas coisas que, por si só, não têm nenhum valor econômico.
Seu objetivo, ao criar, foi apenas proporcionar ao ser humano o prazer do
lazer, da ociosidade e do descanso. Podemos afirmar, sem medo de errar, que se
trata do prazer do ócio, daquela
experiência agradável de ficar um tempo sem fazer nada. Talvez isso seja
difícil de entender numa cultura como a nossa que valoriza o ativismo e a
produção e que tem dificuldade de encontrar tempo para o prazer de descansar,
para o prazer de parar para ficar sem fazer nada. Na era do consumismo e da
busca obsessiva de ter dinheiro para gastar, o ser humano vai perdendo o prazer
do ócio. Trabalha como louco para poder ter um dia um tempo livre para gastar o
dinheiro (Ecle 5,9-16). Mas a obsessão é tanta que ele nunca consegue parar
para descansar, pois “a fartura do rico não o deixa dormir” (Ecle 5,11). No
cristianismo chegou-se à obsessão de pensar que o descanso e o ócio eram
pecados.
Em
outras culturas religiosas a coisa é bem diferente. Elas chegaram a criar a
figura do deus otiosus, ou seja, do
deus que se afasta da sua criação e não faz nada, a não ser descansar. Nas
religiosidades africanas, por exemplo, temos a figura de Olorum, o deus
criador, que depois de ter começado a criação se afasta definitivamente dela
para descansar, confiando a responsabilidade de concluir a sua obra a
Obatala.
Portanto,
o Deus bíblico, o Deus cristão, é um Deus lúdico, ou seja, que gosta do prazer
de se divertir e aproveita de momentos de folguedo para passear e praticar o
lazer. Neste sentido é muito significativa a cena do livro do Gênesis (3,8)
segundo a qual Deus, aproveitando a brisa da tarde, passeia pelo jardim por ele
criado. O Deus da Bíblia é um Deus que adoraria estar com os seres humanos
curtindo gostosamente as maravilhas da criação e saboreando a alegria de uma
boa diversão, de uma boa festa. Temos, pois, que resgatar esse elemento
teológico para valorizarmos melhor o nosso tempo de lazer e de descanso.
Isso se encontra também no
Segundo Testamento, o qual vai apresentar o Reino ou Reinado de Deus como sendo
uma grande festa prazerosa, com muita comida, muita bebida e muita diversão (Lc
14,15-24; Mt 22,1-14). Considerando que segundo estes e outros textos bíblicos
o Reino e o Reinado de Deus não podem ser confundidos com o céu, ou seja, com a
vida após a morte, isso adquire um significado muito profundo para o tema do
lazer e do descanso. Significa que no projeto divino para o seu Reino e para o
seu Reinado está incluída, já aqui nesta vida terrena, também uma vida
prazerosa de descanso e de lazer para os seus filhos e filhas.
O próprio Jesus se
apresentou ao povo de sua terra como sacramento
de um Pai que gosta de muito lazer, festa e descanso. Quebrando regras
convencionais, tradições seculares, Jesus é alguém que gosta da “boa vida”, do
não fazer nada, e de curtir momentos prazerosos, regados a base de muita comida
e de muita bebida, inclusive na companhia de gente de má fama.
O primeiro sinal por ele
realizado, segundo o Evangelho de João, foi a transformação de água em vinho,
no final de uma festa de casamento, quando todo mundo já estava bêbado (Jo
2,1-12). Os Evangelhos mostram um Jesus que gosta e que promove entre os seus o
lazer e o descanso (Mc 6,31-32; 10,13-16; Lc 10,38-42). Como já dissemos antes,
ele amava a “boa vida”, as festas e o descanso. Esse seu tipo “boêmio”
mereceu-lhe a fama de fanfarrão, comilão, beberrão, além de ser acusado de ser
amigo de pessoas indecentes (Lc 7,33-34).
Jesus era assim porque ele
via em primeiro lugar a vida e não a religião. E a vida não era para ser vivida
debaixo do sofrimento e da penitência, mas para ser desfrutada e saboreada com
imenso prazer. Para Jesus a vida é felicidade completa, gozo, paz, harmonia, ou
seja, prazer completo. Uma vida sofrida, maltratada, oprimida, castigada é
indigna de Deus e não pode ser aceita e nem mesmo estimulada.
Foi por isso que o
cristianismo, desde os seus primeiros momentos, se apresentou como uma religião
alegre e prazerosa (Fl 4,4; Gl 4,27; Ap 19,7). Pena que, aos poucos, foi
abandonando as pegadas de Jesus e se fechando num tipo de religiosidade que
suprimiu quase que de forma absoluta a alegria e o prazer. Mas podemos afirmar
que o descanso e o lazer são direitos sagrados que estão na origem da fé
judaica e da fé cristã. Do ponto de vista bíblico é legítimo e natural divertir-se
e descansar.
Hoje, porém, o desafio está
em saber como curtir o lazer e como descansar. Infelizmente a quase totalidade
das pessoas não descansa de verdade e nem pratica um lazer sadio, uma vez que
estão estressadas pelo consumismo e pelo corre-corre da vida. Quando vão
descansar e em busca do lazer levam consigo toda a parafernália do consumismo
(laptop, celulares, músicas estressantes, aparelhos sonoros, carros barulhentos
etc. etc.). São incapazes de descansar contemplando coisas bem simples, como o
voo de uma ave e o desabrochar de uma flor (Mt 6,25-29). Mesmo porque, num
ambiente totalmente urbanizado como o nosso, faltam espaços para esse tipo de
descanso e de lazer.
Nesse contexto, o
cristianismo tem a missão de contribuir para o resgate sadio dessa dimensão
indispensável da vida humana. Mas será que também os cristãos e as cristãs não
estão estressados e nevróticos? Estão descansando de verdade e cultivando o
lazer? Os leigos e as leigas, que trabalham a semana inteira para o próprio
sustento, não estão sendo explorados nos finais de semana pelos padres, bispos
e pastores? Dessa forma têm condições de ajudar os outros? Podem ser
referencial para o restante da sociedade? As próprias celebrações religiosas
não são, muitas vezes, estressantes, chatas, moralistas e cansativas? Está na
hora de pensar e de agir e não apenas de invejar e criticar aqueles que buscam
formas sadias de descansar e de relaxar.