Os
impostores no Ministério da Ordem
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e
professor
O meu amigo, Pe. José
Antônio, do clero da arquidiocese de Mariana (MG), com quem tive a grata
satisfação de trabalhar no Setor Vocações e Ministérios da CNBB (1999-2003), em
recente artigo divulgado na internet, levantava a pergunta acerca do principal medo do papa Francisco. A
pergunta poderia ser muito bem invertida para evidenciar quais são as pessoa
que, na Igreja Católica, mais temem as audaciosas propostas de renovação
apresentadas pelo papa Francisco, e que, a meu ver, estão condensadas na sua
exortação Evangelli Gaudium. Quem, na
Igreja Romana, teria medo de propostas como esta: “Convido todos a serem
ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o
estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades” (EG, 33)?
Com
certeza estariam em primeiro lugar os grupos católicos ultraconservadores, bem
representados pela Fraternidade São Pio V, fundada pelo bispo cismático
Lefebvre. Porém, os conservadores católicos não causam tanto medo ao papa e nem
o papa lhes provoca medo. Reagir a toda mudança na Igreja está no DNA desses
grupos, os quais acreditam piamente que o único modelo histórico de Igreja é
aquele construído a partir do Concílio de Trento, ou, pior ainda, a partir do
espírito da Contrarreforma.
Quem,
então, causaria medo ao papa Francisco, ou, melhor dizendo, quem tem medo das
propostas do papa Francisco? Pe. José Antônio, sem rodeios, afira que é o “clero
camaleônico”, ou seja, aqueles padres que vendo o ministério ordenado como status, como profissão bastante
rentável, como pedestal para a fama e o sucesso, temem um papa que insiste em
dizer que o ministério ordenado é serviço
e que os padres precisam “sentir o cheiro das ovelhas”.
Prosseguindo
em sua reflexão, o Pe. José Antônio alerta para um particular assustador: a
quase totalidade desse “clero camaleônico” é formada por padres jovens e por
seminaristas, futuros padres, que já se comportam como se fossem ministros
ordenados. É assustador porque era de se esperar que padres jovens e
seminaristas, formados depois do Concílio Vaticano II, fossem capazes de
acolher com entusiasmo e paixão a proposta de renovação da Igreja apresentada
pelo papa Francisco. Mas não é isso que estamos vendo. Boa parte deste clero
permanece indiferente ao que o papa Francisco vem dizendo. Sinal claro dessa
indiferença é a falta de divulgação, de conhecimento, de estudo e de aplicação
pastoral da exortação Evangelli Gaudium.
Pude constatar isso pessoalmente em recente assessoria a um grupo numeroso de
pessoas, na sua quase totalidade formada por leigos, sobre a exortação papal. A
queixa geral era de que os padres não falam da Evangelli Gaudium. Constatou-se inclusive o caso de padres que nem
sequer sabiam da existência da exortação. Há poucos dias uma senhora de uma
paróquia do interior da Bahia perguntava ao jovem pároco de sua cidade porque
na sacristia da igreja paroquial ainda não tinha sido colocada a fotografia do papa
Francisco. Queria saber porque tudo tinha parado na foto do papa Bento XVI. O
pároco respondeu-lhe que a razão era o fato de que os vidraceiros da cidade
estavam sem moldura. Conversa essa que não colou, pois a senhora, do alto da
sua experiência de idosa, percebeu que o pároco estava mentindo.
Mas
há também aquele grupo de padres e de seminaristas que faz de conta que acolhe
as propostas do papa Francisco. Age, porém, como camaleão, por mero oportunismo
e para continuar levando vantagem em tudo, visando não perder as benesses
oferecidas pelo acesso ao ministério ordenado. Este grupo de clericais
externamente faz de conta que aderiu ao papa Francisco, mas, na prática, sempre
que pode, oculta, desvirtua e desvia os ensinamentos papais, não permitindo que
o povo tome conhecimento daquilo que o papa Francisco está propondo com certa
insistência.
Diante
do que acabamos de expor vem de imediato a pergunta: o que leva padres e
seminaristas a agir desta forma? Por que temem o papa Francisco? Por que agem
com indiferença ou fazendo de conta que acolhem a palavra do bispo de Roma?
Inúmeros
estudos publicados nos últimos anos explicam de modo suficiente este problema.
São estudos com dados incontestáveis, baseados em pesquisas sérias. A própria
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Organização dos Seminários
e Institutos do Brasil (OSIB) e a Comissão Nacional de Presbíteros (CNP)
patrocinaram alguns desses estudos,
Duas
causas estariam por trás desse
comportamento. A primeira delas é a visão de vocação presbiteral como sendo a
vocação por excelência. Ser padre é “dez”,
é estar acima de qualquer coisa. Chegar a ser padre é colocar-se acima de tudo
e de todos os mortais. A segunda causa seria o desejo das dioceses de suprir a
falta de padres, levando-as a admitir nos seminários e no presbitério verdadeiros
impostores que olham para o
ministério ordenado como a forma mais fácil de adquirir poder, status, fama e
dinheiro. A tais pessoas não lhes importa o serviço
ao povo, mas as vantagens que vão ter com o acesso ao ministério ordenado.
A
filósofa, socióloga e teóloga Arlene Denise BACARJI realizou recentemente um
estudo sobre essa questão, baseando-se em dados de pesquisas feitas em diversas
partes do mundo por eminentes pesquisadores. O próprio título do seu estudo é,
por si mesmo, bem sugestivo: A impostura no Ministério da Ordem. Transtornos
de personalidade e perversão no Clero à luz da psicanálise e da psiquiatria. O estudo acaba de ser publicado
pessoalmente pela autora. É lamentável que ela não tenha encontrado uma editora
católica capaz de assumir a publicação, obrigando-a a fazer uma edição privada.
Essa recusa não deixa de trazer um grande prejuízo para a própria Igreja
Católica.
Em
seu estudo, depois de analisar a origem do problema da impostura no Ministério
da Ordem, a autora se detém cuidadosamente na reflexão sobre os transtornos e
as perversões dentro dos quadros da Igreja, particularmente entre o clero. Fala
dos desvios institucionais, de personalidade antissocial, narcisista patológica
e sobre as perversões propriamente ditas. No final aponta algumas
possibilidades de saída do impasse.
Arlene
Bacarji mostra como a natureza hierárquica, uma falsa compreensão da
misericórdia, a segurança que o ministério ordenado proporciona e o celibato
visto como um modo de não se relacionar em profundidade com ninguém atraem com muita facilidade pessoas com
transtorno de personalidade e muita gente perversa. A pessoa com essas
patologias “sempre consegue um bispo desavisado, misericordioso, confiante em
sua remissão, que o acolherá” (p. 36). Bacarji lembra que o sistema
eclesiástico favorece tais pessoas, uma vez que “elas aprendem rapidamente como
subir em postos de poder, como fazer para serem elevados a bispos, cardeais”
(p. 43).
A
autora apresenta o perfil do impostor
no Ministério da Ordem: “O poder, o brilho, o sucesso, só dependem de sua
eloquência no altar, de sua capacidade de sedução e poder de atração, e de sua
capacidade retórica, persuasão, de introjetar os sentimentos e emoções na sua
fala de modo que impressione o público, para que seja admirado, endeusado e
adorado. O Altar se torna um palco. Pois a oficialização desse poder já está
dada. A impostura no Ministério da Ordem por estas personalidades todas que
tratamos neste livro se caracteriza pela grandessíssima capacidade da pessoa de
fazer ‘teatro’. Elas representam
muito bem” (p. 43). E representam tão bem que são capazes de camuflar a aversão
ao papa Francisco e ao que ele propõe, bastando para tanto apenas um “discurso
bonito” (p. 44), ou seja, aquele discurso
lacunar, através do qual a pessoa fala um monte de baboseira que seduz os
desprovidos de senso crítico, mas que não diz absolutamente nada.
O
que fazer? Existem saídas? É claro que sim. O problema é saber se os bispos
estão dispostos a coloca-las em prática. Eu aponto pelo menos três. A primeira
delas é desmistificar a figura do padre, retirando dele toda auréola sacral que
o envolve. Apresentá-lo como um homem
comum, normal, igual aos outros, chamado por Deus a ser diákonos, ou seja, mero servidor dos demais.
Homem sinal sacramental de Cristo servo de todos, que veio para servir e não
para ser servido (Mc 10,35-45). Nessa perspectiva o acento deve ser colocado
sobre a vocação comum batismal, como
nos lembrou o Vaticano II na Lumen
Gentium. O importante não é ser padre, mas discípulo, seguidor de Jesus, missionário,
como enfatiza diversas vezes o Documento de Aparecida.
Uma
segunda saída seria a revisão do atual
modelo de ministério ordenado, focado excessivamente no padre celibatário
que passa entre oito e nove anos no seminário e que sai de lá bastante treinado
para ser “aparentemente normal”, mas que, na prática, é uma pessoa cindida, tendendo para a mentira crônica
(Bacarji, p. 45-64). Não há como resolver o problema da impostura no ministério
ordenado enquanto não se fizer uma reforma séria no ministério ordenado,
incluindo nele novas formas de ministérios que descentralizem o poder e quebrem
o monopólio e o autoritarismo dos padres.
A
terceira proposta de saída é a mudança de
comportamento com relação a essas pessoas. Bacarji lembra “que Cristo e o
Evangelho não são tolerantes com a hipocrisia e com a falsidade” (p. 45). Por
isso, ela afirma que “a misericórdia com estas pessoas deve ser pensada em
outros moldes que não a habitual. Talvez seja mais misericordioso impedi-las de
terem oportunidade de vivenciar suas perversões e patologias anti-sociais ou
narcisistas, fazendo mal às pessoas da Igreja, à própria Igreja, a Deus e a si”
(p. 67). Isso significa que a formação inicial dos candidatos aos ministérios
ordenados precisa ser mais séria,
capaz de identificar possíveis impostores
e impedindo-os de chegar à ordenação. Mas para isso é preciso que à frente dos
seminários estejam pessoas equilibradas e não seres transtornados e perversos.
Por
fim, é preciso dizer que a maioria dos
padres é formada por homens honestos, sérios, simples e inteiramente doados
ao povo. E isso é uma grande consolação. Mas, na maioria das vezes, esses
padres não são valorizados, não são apresentados pela mídia católica, sendo
sobrepujados pelos impostores, geralmente midiáticos
e “carismáticos” que se apresentam ao povo como os únicos modelos de presbíteros. Com isso o estrago está feito, pois
o povo, iludido por “lobos vestidos com peles de ovelhas” (Mt 7,15), acaba
deixando-se seduzir. “As batinas, hábitos, clergyman, para estas pessoas,
representam poder e também especialidade em relação aos outros mortais, por
isso muitos deles fazem questão dessas coisas já desde o seminário” (BACARJI,
p. 62). Precisamos, pois, estar muito atentos, pois a impostura no ministério
ordenado “costuma confundir muitos superiores e a todos nós” (Ibid., p. 70).
O livro de Arlene Bacarji pode ser solicitado
pelo e-mail arlened@uol.com.br