sábado, 4 de abril de 2015

O Silêncio


Ana Marcia Guilhermina de Jesus


Muitas vezes a voz do silêncio nos enclausura de maneira forte, mas necessária, grita alto e ressoa muito mais do que palavras proferidas, principalmente nos momentos de dor e sofrimento.

Passei esses trinta dias num deserto, sofrendo a dor da perda, tentando entender o que realmente aconteceu. Fiz mil perguntas, busquei milhares de respostas, ouvi falas de muitos parentes, amigos, conhecidos e colegas e na maioria das vezes, de pessoas até desconhecidas. Gente de várias partes do Brasil e da Itália se fizeram presentes neste momento tão difícil, tentando amenizar a minha dor e aliviar o meu sofrimento. Senti o quanto é importante a solidariedade, a partilha e o carinho das pessoas, senti a presença de Deus em cada uma delas, que me abraçando e  acariciando, me encheram de ternura.

O nosso Deus que se fez presente em Jesus Cristo no ato da criação continua se fazendo presente em cada ser humano, pude perceber isso em cada gesto de carinho que recebia.

Creio que ao soprar a vida no ato de criar o criador deu este sopro profundo de amor, ternura e compaixão, o qual fez o ser humano se tornar um ser diferente das outras criaturas, e é justamente essa humanização que sustenta a humanidade inteira. Posso dizer com toda a força o quanto esta presença está sendo amiga, me sustentando, alimentando minha fé, minha confiança e mantendo viva a chama da esperança.

Comecei dizendo aqui, que silenciei porque o silêncio faz parte do ritual de luto que estou vivenciando, até porque é preciso organizar a mente, reformular as palavras, refazer muitos sentimentos, que com a morte, se misturam dentro de nós.

Quem morre nasce para uma nova vida. Passa pelo mistério da ressurreição. A outra metade que fica precisa necessariamente passar pela reconstrução e contemplar esse grande mistério da ressurreição. No caso meu e de Lisboa, por exemplo, nós dois vivemos com intensidade o amor. O tempo que passamos juntos foi de muita cumplicidade, intimidade, carinho, ternura, respeito, amor, solidariedade, uma relação com muita clareza. Tudo sempre foi muito puro, transparente e coerente, em plena luz. Criamos laços fortes e profundos de confiança desde o momento que nos conhecemos. Por esse motivo o sofrimento e a dor estão sendo muito grandes. Foi-se, uma parte de mim.

Em nossos corações apaixonados, um existia para o outro, um estava para o outro com eterna e profunda doação. Com o tempo esses laços foram se solidificando e o amor intensificava-se cada vez mais a ponto de dizermos um para outro: “te amo a cada dia e cada vez mais, se é que ainda cabe mais amor dentro de nossos corações”.

Esse sentimento profundo que marcou nossas vidas parecia não caber dentro de nós e por isso extravasava na partilha, na solidariedade para com as outras pessoas, principalmente para com aquelas mais carentes de amor, como é o caso de muitas em nossa sociedade tão excludente. Por este motivo, nosso amor nunca ficou fechado entre nós, ele era aberto como raios de sol tentando aquecer outros corações, partilhando um pouco de nós mesmos e da nossa felicidade.

Foi esse o motivo que me fez voltar tão cedo para o nosso apartamento, já que havia em mim certa resistência em enfrentar esta realidade. Quando entrei aqui pela manhã senti forte a presença dele. Senti que aqui está a nossa vida, a nossa aliança de amor. Foi aqui que construímos os melhores momentos de nossas vidas. Aqui foi o lugar das buscas, das lutas e das conquistas. Aqui passamos muitas noites de núpcias, dias e noites de profundo e intenso amor e carinho. Aqui, neste lugar, a cada instante crescia o amor de um pelo outro, intensificava-se o prazer de estarmos juntos, a alegria de podermos gozar da presença um do outro e a certeza de que esse amor era a prova maior do amor de Deus por nós, tanto que repetíamos sem nos cansar, que um era o presente da Trindade para o outro.  Por tudo isso, ter que devolver este presente tão precioso para a Trindade foi e está sendo o mais difícil.

Às vezes o meu corpo se sente todo despedaçado, meu coração, partido, meus ossos roídos. Parece que não vou suportar tanta dor... Meu corpo ferido, minha alma geme e eu choro, eu grito, eu reclamo, eu brigo, eu esperneio e respiro (pausa).

Por isso, muitas vezes me calei para não brigar com Deus, com o mundo e principalmente comigo mesma. Ao entrar aqui, senti que está na hora de sair do silêncio e falar. Falar da vida dele para os quatro ventos... Falar que não fui eu, apenas, que o perdi. A Igreja também perdeu um grande teólogo e filósofo. Perdeu um profeta, que, com coragem sempre gritou como Jeremias na porta do templo (Jr 7,2-3), anunciando o reino e denunciando as injustiças.  Como um sinalizador dos tempos contribuiu com a Teologia da Libertação, que visa o trabalho preferencial pelos pobres e excluídos. Ele, com sua audácia e perspicácia conseguia enxergar e antecipava os tempos, dando assim, a sua contribuição profética.

A Pastoral Vocacional perdeu um apostolado das vocações. Toda a sua vida, todo seu tempo foram de doação sem reserva, preocupado com as vocações, de cada ser humano. Seu desejo era que cada pessoa se realizasse, acolhendo a própria vocação como um chamado de Deus e assim pudesse viver de forma digna e coerente. Para ele, a pessoa só se realizava quando respondesse de forma consciente à sua vocação.

O mundo perdeu um escritor que falou, profetizou, anunciando de forma clara e profunda o amor da Trindade. Quando sentia que esse amor deveria ser contado de forma poética, ele o fez com romantismo e elegância. Porém, quando sentia que esse amor deveria ser denúncia à desumanidade, desigualdade e tudo aquilo que fere a dignidade humana, ele gritava com força, altivez e vivacidade para ser ouvido.

Ele foi radical em suas falas, coerente em suas atitudes, buscando sempre estar ao lado dos mais fracos e excluídos. Era a voz do povo. Daqueles que não tinham voz e nem vez. Era o pensamento crítico e a reflexão espiritual a serviço daqueles com pouco esclarecimento das coisas, na batalha contra a alienação e buscando sempre a ética.

Os estudantes perderam um grande professor, o qual gostaria de ver seus alunos conscientes de uma formação mais crítica. Queria que, não apenas se formassem trabalhadores serviçais, para sofrer na mão do Capital e nem se acabando nas vicissitudes por ele engendradas. Queria que eles buscassem entender o país e a sociedade na qual vivem e assim se capacitassem para oferecer sua contribuição na construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

A família biológica perdeu um filho comprometido, que deixou literalmente escrito o amor e o respeito que tinha pelos pais.

Os amigos perderam um grande companheiro, que nunca se esquecia de dizer: “obrigado pela força da amizade, pela solidariedade e pela partilha”. Despido de vaidade, atendia a todos de igual para igual, sem fazer distinção alguma, seja de idade, gênero ou classe social. 
Nem o tempo nem a morte, nada e ninguém vai nos separar. Nosso amor é eterno. Você está sempre vivo em meu coração, em minha vida, em minha alma, em todo o meu ser. Te amarei sempre aqui e por toda a eternidade. Amém.